sábado, 19 de novembro de 2011

reflexão sobre MT 5, 43-48

Este post surgiu depois de uma rápida conversa via twitter com a @keel_gomes citando uma frase sobre o desprezar quem nos "odeia" eu a respondi exatamente com este trecho do evangelho de Matheus. Então resolvi recuperá-lo texto fazendo a minha própria tradução do texto grego e comentá-la tanto do ponto de vista exegético quanto hermenêutico, tarefa que não sei se vou conseguir fazer com êxito. Longe de tentar fazer um proselitismo biblíco meu intento é bem mais humanista do que o de valorizar uma religião específica, me identifico como cristão muito antes de qualquer denominação religiosa: católica, prostestante, ortodoxa e afins. E portanto quero refletir filosoficamente (na medida em que isso é possível) e teologicamente (levando em conta o objeto de análise) sem valorizar o que prega esta ou aquela comunidade religiosa (o que de certo modo mataria o texto analisado). Então passamos a tradução do texto e a seguir o comentário a seu respeito.
"Ouvistes o que foi dito:"Amarás(agapéseis) o teu próximo e odiarás(miséseis) o teu inimigo". Mas eu vos digo: "Amai (agapate) os vossos inimigos e orai em favor daqueles que vos perseguem, afim de que sejam (génesthe) os filhos do vosso pai que está nos céus, porque ele faz levantar o sol sobre os perversos (poneróus) e sobre os bons (agathóus) e faz chover sobre os justos (dikaióus) e os injustos (adikóus).
Se pois amastes (agapésete) os que vos amam (agapontas), que mérito (misthón) teréis? Não é assim que agem os cobradores de impostos? e se comprimentares apenas os vossos irmãos, o que fizestes de excepcional? Não é assim que agem os pagãos? vós deveis ser perfeitos (téleioi) assim como o vosso pai, o celestial é perfeito (téleiós)." (MT 5,43-48).
É importante lembrar que o Evangelho de Matheus é o segundo a ser escrito de acordo com Konings: "O evangelho de Matheus surge depois do ano 70 d.c. É como se fosse uma "nova edição revista, atualizada e aumentada de Marcos." (Konings,Johan. A palavra se fez livro, p.57). E embora o texto tenha sido escrito no dialéto koiné (comum ou vulgar) o vocabulário é rico de significação, moral e religiosa e acima de tudo resgata do ponto de vista teológico a revelação de um Deus que não faz distinção entre os homens, o que isso significa? significa que Deus tem como projeto salvífico alcançar toda humanidade com a sua misericórdia e justiça. Em outra passagem ainda no Evangelho de Matheus e ainda nos discursos que ocorrem depois do sermão da montanha(do qual este trecho faz parte). Jesus afirma: "Não julgueis (nomísete) que eu vim para anular (katalysai) a lei (nómon)ou os profetas. Não vim para os anular (katalysai) mas para completá-los (plerosai)." (MT 5,17)Com isto Jesus revela o verdadeiro papel da lei mosaica que era o de orientar o povo eleito de Deus frente as culturas pagãs. E também revela o intento de Deus ao eleger um povo inteiro como testemunha do seu projeto de salvação o qual pretende estender a toda humanidade. E com isso fica patente o sentido de perfeição que Jesus atribui ao pai e exige dos filhos deste mesmo pai uma vez que gerados (génesthe) pelo seu amor e guardiães do seus mandamentos. primeiro analisarei o verbo "génesthe" e concebê-lo ontologicamente enquanto ser e gerar, pensar que os que são filhos de Deus, o são porque foram gerados pelo amor dele, estão acima do ato criador de Deus e por isso chamados a participar da perfeição de Deus. E agora sim conceber o sentido de perfeição (téliós) palavra grega que indica mais um acabamento de uma ação (dizemos que uma estátua é perfeita quando ela está completamente terminada). Em outras palavras a perfeição exigida aqui é ser de tal modo que a humanidade esteja acima dos nossos pequenos desejos e satisfações pessoais, é uma exigência dificil de ser cumprida é verdade, mas neste caso a perfeição (téleiós) é equiparada a outro termo grego consagrado por meio da filosofia antiga e que será incorporada a cultura cristã nos séculos posteriores, a saber o conceito de areté (excelência) mas que ficou consagrado pela tradução latina de "virtude". E por que é possível equiparar estes dois termos: perfeição e excelência? porque a areté cujo a raiz etimológica é aristós (o melhor ou ótimo) tem a ver com o realizar de modo eficaz uma ação, e de certo modo significa ser perfeito, na medida em que a ação é realizada adequadamente ela é completa e portanto perfeita. E é neste sentido que se exige a perfeição no sentido de sermos humanos ao ponto de nos divinizarmos e sendo divinizados nos humanizamos e nos acolhemos uns aos outros.
Como eu disse é um trabalho díficil de ser executado porque somos constantemente interpelados pela cultura, pelos prazeres e pelo instinto.
É possível falar da agapé enquanto amor no sentido forte de charitas ou caridade tal como o cristianismo incorporou ao longo dos séculos em oposição ao sentido que eros (o amor vinculado ao desejo e sua dimensão erótica) e philía (comumente traduzida por amizade, mas também carrega os traços do desejo carnal). Eu diria que Agapé neste trecho do evangelho carrega sim o sentido consagrado pela igreja do primeiro século, no entanto o amor aqui deve ser encarado de uma forma mais branda ligada a tolerância e acolhimento, Vale lembrar a parabóla do bom samaritano (Lc 10, 25-37) quando Jesus pergunta ao doutor da lei: "Qual destes três parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões?" (Lc 10,36)A resposta do doutor da lei é paradigmática: " Aquele que usou de misericórdia para com ele". (Lc 10,37) o termo misericórdia aqui é "Éleos" literalmente compaixão, misericórdia é em outras palavras conduzir o outro para o seu coração, acolher o outro por inteiro, com suas dores e alegrias. O próximo é qualquer pessoa com a qual agimos com essa misericórdia, não é o fulano da igreja, da escola ou o nosso irmão de sangue, não precisa ser um concidadão de nosso país, estado ou cidade, o próximo é qualquer um, do vizinho ao mendigo. Por isso amar o inimigo embora díficil é equivalente com o amar o teu próximo, agir sem fazer distinção se a pessoa simpatiza ou não com você é um gesto que nos aproxima de Deus, nos tornando filhos deste pai celestial. E por isso Jesus nos interroga: Se você ama só quem te ama, qual é o teu mérito (místhon)? Essa palavra místhon pode ser traduzida por recompensa ( costuma aparecer nas traduções correntes da bíblia) Mas eu optei por traduzir por mérito pensando no paralelo com a noção de dignidade. Jesus continua perguntando: " Se você comprimenta apenas as pessoas que fazem parte do seu circulo social(os irmãos), o que você faz de excepcional? Não é que jesus espera que toda vez que saíamos na rua a gente diga oi para pessoas que a gente nunca viu na vida, (Embora eu mesmo já fui comprimentado diversas vezes por pessoas idosas na rua que eu nunca vi na vida e isso nunca me fez pensar que um bom dia ou boa tarde fizesse mal a alguém) o que Jesus está dizendo é não fazer a diferença é literalmente ser mais do mesmo, é tornar a existência mediocre e inautêntica em favor do medo e do egoismo.
A exortação de Jesus é humanista porque tira o homem da esfera do olhar meramente cultural e regasta o valor universal e supremo da humanidade, coisa que o judaismo formalizado de seu tempo não conseguia fazer e que infelizmente muitos "fiéis" também não conseguem fazer, presos em uma visão limitadora da vivência religiosa e ignorando que a verdadeira experiência de Deus, sobretudo no cristianismo brota da práxis, da ação cotidiana de cada um, nas palavras do filme Todo poderoso: "seja você o milagre"!