terça-feira, 23 de outubro de 2018

Sócrates, o isentão



“Se eu tivesse me envolvido na política, teria sido conduzido à morte há muito tempo e não teria feito nenhum bem a vós ou a mim mesmo” (PLATÃO, Apologia 31e).
O termo “isentão” cunhado para desmerecer eleitores moderados que a priori não assumem um posicionamento político claro e evidente, poderia ser claramente atribuído a Sócrates no episódio celebre por ele mesmo contado através de Platão, na qual ele não parte para o exílio junto com os membros do partido popular quando a tirania dos trinta foi instaurada em Atenas.

O relato da instauração da tirania dos trinta pode ser encontrado na Constituição de Atenas de Aristóteles tal como segue abaixo:
Uma das cláusulas do tratado de paz (da guerra do Peloponeso) estipulava que o Estado fosse por eles governado de acordo com a Constituição dos ancestrais (provavelmente a constituição de Sólon). Em consonância com isso o partido popular empenhou-se em preservar a democracia. Os notáveis, porém, integrantes das associações políticas, bem como exilados que já retornavam à pátria após a celebração da paz, almejavam a oligarquia; quanto aos notáveis não pertencentes às associações políticas, mas que em outros aspectos não se julgavam inferiores a quaisquer outros cidadãos, estavam interessados em restaurar a Constituição dos ancestrais. (...) Quando Lisandro se posicionou a favor do partido oligárquico, o povo sentiu-se pura e simplesmente intimidado e forçado a votar em favor da oligarquia (ARISTÓTELES, Constituição de Atenas, 34).

Tendo o povo aceitado a oligarquia como regime de governo a tirania dos trinta assumiu o controle na cidade e segundo Aristóteles: “Senhores do Estado, ignoraram no seu governo a maioria das resoluções que haviam sido aprovadas com referência à Constituição” (ARISTÓTELES, Constituição de Atenas, 35). A consequência imediata da displicência dos oligarcas no que tange a fazer cumprir a Constituição tal qual acordada pelos atenienses é descrita pelo Estagirita abaixo:
Inicialmente, agiram com moderação no trato dos cidadãos e simularam administrar o Estado de acordo com a Constituição dos ancestrais. (...) De início, portanto, ocupavam-se dessas atividades, na eliminação dos fraudadores e daqueles que se associavam de maneira indesejável ao povo lisonjeando-o e não passavam de indivíduos maldosos e patifes. Diante de tudo isso, a cidade mostrava-se muito satisfeita, no pensamento de agiam alimentando as melhores intenções. Mas tão logo consolidaram um controle ainda mais firme do Estado, não pouparam nenhuma classe de cidadãos, condenando à morte e executando aqueles que se distinguiam seja pela riqueza, seja pelo nascimento, seja pela reputação. Com isso visavam a eliminar todos que eles tinham motivo para temer,(...) (ARISTÓTELES, Constituição de Atenas, 35).

Notamos um exemplo bastante eloquente de como um regime constitucional e estabelecido por consenso e voto se torna gradativamente um regime autoritário e autocrático. Não obstante assumir ou não uma posição diante desse estado de coisas parece inevitável para qualquer um. Sócrates não assumiu um lado, não apoiou a tirania e tampouco se retirou de Atenas com os membros do partido popular. Sócrates não tinha partido, era inteiro. O filósofo procurava a justiça e não a deixava de lado por medo da morte, seja no período em que Atenas era uma democracia sob o governo do partido popular, seja na oligarquia com a tirania dos trinta.

O próprio Sócrates diz: “jamais me curvaria, por medo da morte, a qualquer pessoa que contrariasse o que é justo, preferindo morrer a curvar me” (PLATÃO, Apologia 32a). E o que é justo para Sócrates? O filósofo mesmo explica: “ter a lei e a justiça ao meu lado” e completa “ a aliar-me a vós, quando vos empenhavas num procedimento injusto” (PLATÃO, Apologia 32c). Quando Atenas ainda era uma democracia o filósofo se recusou a votar pelo julgamento coletivo dos generais que falharam na batalha de Arginusa, pois tal procedimento era ilegal subentenda inconstitucional.

Quando Atenas é tomada pela oligarquia os tiranos que se tornaram “senhores do Estado” tentavam implicar em seus crimes vários cidadãos, dentre os quais Sócrates. Em um desses casos os tiranos exigiram de Sócrates e outros cidadãos que buscassem um homem, Leon de Salamina, no exílio para ser executado. Enquanto, muitos cidadãos movidos pelo medo saíram de Atenas para cumprir a ordem dos tiranos Sócrates simplesmente retornou para a sua casa como nos relata Platão: “Aquele governo, por mais poderoso que fosse, não me intimidou no sentido de realizar algo injusto. Entretanto, quando saímos da rotunda, os outros quatro dirigiram-se a Salamina e prenderam Leon. De minha parte, limitei-me a voltar para a minha casa” (PLATÃO, Apologia 32d).

Quando somos persuadidos pela razão que nos inclina para a justiça a força que pode quebrar o corpo, manchar superficialmente a sua reputação, não pode retirar de nós a virtude. Compreender no momento atual que estamos entre a cruz e a espada é sensato. Mas não peça a ninguém que escolha entre um e outro movido pelo medo, ou pelo ódio aos adversários. Ficar a meio caminho para observar o que acontece com atenção não é covardia, é prudência! Buscar a mediania não é tibieza é sensatez! Reconhecer as limitações dos discursos e exigir das partes que sejam melhores do que se mostram é justo e legítimo, mais legítimo inclusive do que fazer do debate público uma arena de MMA.

E se é preciso ficar e resistir porque “ ao longo da minha vida, em qualquer atividade pública em que possa ter me engajado sou o mesmo homem que da vida privada. Jamais compactuei com alguém para uma ação injusta” (PLATÃO, Apologia 33a ). Eu preciso lembrar constantemente que sou míope. De que preciso trocar os óculos com os quais vejo o mundo regularmente. Então, preciso constantemente avaliar minhas escolhas, me limpar de minhas contradições, reduzi-las ao máximo e ser dentro do que a minha limitada e defeituosa condição humana permite que eu seja.

Por isso, inspirado mais uma vez na história antiga, na filosofia antiga busco para a razão um remédio que permita que eu veja e faça a outros que vejam também se querem enxergar a realidade que não se curvem a tiranos. Que não abracem a tirania de nenhum tipo. Porque seus seguidores mordazes ganharam terreno e se alimentaram do que tínhamos de sonhos, se alimentaram como dementadores da nossa tristeza, e incentivaram como sith a escuridão que escondemos de nós mesmos.

Não desmereçamos os “isentões” são eles, como eu, que irão decidir essas eleições. Inclinando se ou não a um dos extremos, ou permanecendo no centro indicando que nenhum dos dois extremos agradam à república e o verdadeiro Estado democrático de direito.
Brener Alexandre 23/10/2018