“Sereias
serão tua primeira prova. Elas encantam todos os que porventura passam por
elas. Quem inadvertidamente se entregar ao canto delas nunca mais retornará ao
lar, nunca mais cairá nos braços da mulher, não verá os pequerruchos nunca
mais. Elas enfeitiçam os que passam, acomodadas num prado. Em torno, montes de
cadáveres em decomposição, peles presas a ossos. Evita as rochas. Tampa com
cera os ouvidos dos teus companheiros para não caírem na armadilha sonora. Se
entretanto, quiseres o mel do concerto delas, ordena que te amarrem de pés e
mãos ereto no mastro. Que o nó seja duplo. Entrega-te, então, ao prazer de
ouvi-las. Se, por acaso, pedires que afrouxem as cordas, ordena-lhes que as
apertem ainda mais” (HOMERO, Odisséia
XII 40-55).
Pensando
na passagem acima da Odisséia de
Homero, tenho refletido sobre as armadilhas escondidas na internet,
principalmente nas redes sociais. O documentário Dilema das redes disponibilizado na Netflix, o livro Os engenheiros do caos de Giuliano Da
Empoli já haviam chamado a minha atenção para as armadilhas escondidas nos
algoritmos das redes sociais que tal qual o canto da sereia quer nos aprisionar
na melodia que seduz o espírito e anestesia a mente.
Os
algoritmos trabalham para estimular certos comportamentos nos usuários da rede
social fazendo com que, por um lado, encontrem pessoas que se identificam por
suas ideias e aspirações, de outro lado, reforcem nelas crenças e
posicionamentos sobre o mundo. O objetivo desses algoritmos é estabelecer
parâmetros que tornem a rede social atraente para o usuário, tal qual uma
arapuca com a sua isca seu objetivo é “aprisionar” o usuário em uma determinada
rede social mantendo-o conectado o maior tempo possível. Talvez a metáfora da
arapuca não faça jus ao que de fato faz o algoritmo numa rede social.
Entretanto, o canto da sereia descrito na Odisséia
pode nos ajudar a ver de que modo o algoritmo nos atrai e condiciona na
virtualidade das redes sociais.
Basicamente,
as redes sociais coletam informações sobre o uso que delas fazemos. Cruza essa
informação com as relações virtuais que estabelecemos e o que publicamos. Tendo
sido coletadas, essas informações apresentam um perfil para o algoritmo que vai
apresentar para aquele usuário o material que ele eventualmente vai desejar
consumir. Fundamentalmente, o algoritmo manipula esse material cruzando
informações entre usuários, empresas e seus anúncios de modo a produzir a teia
que vai segurar os usuários.
Um
canto da sereia poderíamos dizer. Com efeito, o algoritmo entoa através das
informações que coleta a melodia imortalizada no poema homérico.
Na
mitologia segundo Homero, as sereias entoavam uma melodia irresistível que
prendia a atenção dos marinheiros que as escutava e estes se afogavam no mar.
Para escapar das sereias, Odisseu foi amarrado ao mastro de seu navio e os
marinheiros colocaram cera nos ouvidos para não se deixar seduzir pelo canto
daqueles entes mitológicos. Odisseu se privou do uso da cera de ouvido para se
deleitar com o cântico das sereias, mas disse aos seus companheiros que em
hipótese alguma deveria ser solto ainda que implorasse.
Se
na mitologia o canto da sereia encerrava a morte e perdição dos homens. Nas
redes sociais os algoritmos emulam o canto da sereia na exata medida em que o
canto no mito suspende o juízo e recrudesce o pensamento. No mito o cântico é
tão belo e atraente que a atenção de quem o escuta se volta por completo para a
melodia. O marinheiro esquece que está no mar e sucumbe afogando-se nas águas
em êxtase com a voz das sereias. Nas redes sociais o cântico vem na forma de
uma opinião, um “like” ou um comentário numa postagem sua ou de outra pessoa.
Sua atenção é capturada e sem perceber o usuário fica preso numa prisão sem
grades. Pronto o usuário foi capturado pelo canto da sereia.
O
ser humano é um animal gregário, tem necessidade de se sentir parte de um
grupo. Busca relações de afinidades e pode por vezes se posicionar buscando
aceitação de um grupo qualquer. As redes sociais fornecem em tempo real as
condições para formação de grupos pequenos, médios ou grandes em que pessoas se
encontram para falar do que gostam, do que não gostam. Buscam confirmar suas
crenças e se diferenciar de outros grupos e comportamentos. Até certo ponto
essas atitudes são naturais. As culturas se desenvolvem assim a partir de
valores partilhados e o esforço de cooperação e ou competição mútuos. Todavia,
quando nos deixamos aprisionar em certo grau de dogmatismo em que pesa o nosso
interesse de confirmar a nossa crença corremos o risco de desaprender a
conviver com o diferente e de aceitar a divergência como parte de uma
experiência da vida social inteiramente saudável.
O
viés de confirmação é um fenômeno muito comum nas redes sociais. O usuário
procura consumir opiniões e posicionamentos que reflitam a suas crenças. Numa
rede social qualquer é comum que um grupo de amigos reflita um conjunto de
crenças partilhadas naturalmente como poderia acontecer fora do ambiente
virtual. Mas se o algoritmo entende que quanto mais aparecer daquela opinião no
ambiente virtual mais tempo o usuário vai permanecer conectado essa ferramenta
vai apresentar para o usuário outros perfis, e conteúdos que tenham semelhança
com as opiniões de seus amigos virtuais incentivando e confirmando essas
crenças. Vez ou outra vai deixar escapar um posicionamento divergente, esses
posicionamentos também geram engajamento do usuário.
Notemos
que a armadilha consiste em atrair a atenção e suspender o juízo crítico do
usuário. O perigo mora justamente nesse traço da vida virtual. Parte da
radicalização que encontramos no ambiente virtual vem desse traço das redes.
Quando usuários compreendem o funcionamento do algoritmo de uma rede eles podem
de alguma forma manipular e em alguma medida controlar a realidade nesse
ambiente virtual.
Pessoas
que buscam confirmar suas crenças tendem a suspender o juízo, porque desejam
exatamente endossar sua visão de mundo e não confrontá-la. Quem entende o
algoritmo usa-o a seu favor para atrair essas pessoas que cairão no canto da
sereia e fazendo uso da melodia sedutora coloniza a realidade e a fragmenta. O
naufrágio das mentes que se afogam no radicalismo das redes, nas tribos e
grupos que espelham e ecoam as mesmas ideias.
Atravessar
esses mares bravios com sereias encantadoras pede cera nos ouvidos e coragem
para aceitar que a realidade sempre se impõe. Pensar criticamente não é pensar
assim ou assado. Pensar criticamente é pensar por si mesmo aceitando o mundo
não se adequa caprichosamente as minhas expectativas sobre ele.
Brener
Alexandre 10/09/2021