O filósofo e médico judeu Maimônides (Moisés ben Maimôn 1137/1138- 1204) nos deixou um pequeno
tratado apresentado como uma introdução à ética dos pais escrito em oito
capítulos no qual o rabino Moisés ao se apropriar dos conceitos fundamentais da
filosofia aristotélica: o conceito de mediania, de alma e as suas partes
reflete sobre os meios de viver afastado do pecado, ponto culminante de toda
tradição judaico-cristã.
Além de ser uma contribuição à experiência mística religiosa,
penso que contribui também para a mística filosófica como uma forma de cura sui, ou seja, como um remédio ao
modo das filosofias helenísticas (estoicismo, epicurismo, cinismo e ceticismo)
para a alma.
Não pretendo abordar neste texto em particular a contribuição
que este opúsculo faz à mística e experiência religiosa e ou filosófica,
tentarei de modo livre falar dos aspectos que tornam o trabalho empreendido
pelo filósofo judeu uma contribuição à filosofia como modo de vida e como
tratamento para os males da alma.
Posso falar desta contribuição a partir da minha própria
experiência, já que apliquei em mim recentemente o exercício proposto por
Maimônides no opúsculo aliado ao remédio estóico da vida retirada para o
cultivo do ócio filosófico. Porém antes vou explicar o Método utilizado por
Maimônides e então ficará claro como o tratamento ou remédio funciona na
prática que podemos chamar de exercícios espirituais da filosofia para fazermos
jus ao estudo importante empreendido por Pierre Hadot e Michel Foucault.
Seguindo o caminho de Aristóteles, Maimônides entende que as
doenças da alma são: “sua condição e de suas partes fazerem sempre coisas ruins
e feias e executarem ações desprezíveis” (MAIMÔNIDES, 1992 p.19) em outras
palavras a alma doente se afasta da virtude, afastada da virtude a alma doente
torna o homem indigno, quero dizer tem a sua dignidade diminuída pelo vício/
pecado.
Dignidade aqui deve ser entendida como tudo aquilo que torna
o homem apto a se relacionar com outras pessoas, uma vez que Maimônides
seguindo Aristóteles não pode recusar a sociabilidade inerente à condição
humana.
O tratamento proposto por Maimônides é a busca do equilíbrio
moral através da mediania. A mediania, com efeito, é o meio-termo entre o
excesso e a deficiência que na ética aristotélica é caracterizada como vício
moral.
Deste modo, Rabino Moisés esclarece: “boas ações são aquelas
que se equilibram no meio, entre dois extremos que são ruins; um deles é o
excesso e outro, a deficiência. As virtudes são estados (características) da
alma e disposições adquiridas no meio, entre duas condições ruins [da alma],
uma das quais é excessiva e outra deficiente.” (MAIMÔNIDES, 1992, p.23) Sendo
assim, Maimônides entende que uma vez que se conhece as disposições da alma é
possível tratar seus males com um exercício que nada mais é que uma reeducação
através do hábito: “quando o corpo se desvia do equilíbrio, olhamos para qual
lado se inclina ao se desequilibrar e opomos o seu contrário até retornar o
equilíbrio. Quando estiver equilibrado, removemos este contrabalanço e voltamos
ao que mantém o corpo em equilíbrio. (MAIMÔNIDES, 1992, P.26)
Este é o método terapêutico de Maimônides para curar a alma,
primeiro o individuo é levado a agir no outro extremo e depois pouco a pouco
diminuir o excesso para que o equilíbrio seja alcançado.
Maimônides nos dá alguns exemplos práticos do qual vou me
ater apenas ao da avareza que é um exemplo mais simples de entender, penso.
Segundo o filósofo: “podemos ver um homem cuja alma chegou a
um estado em que ele é avarento consigo mesmo. (...) Assim, se quisermos curar
esta pessoa doente, não a mandaríamos ser generosa. Isto seria como usar um
método equilibrado para tratar alguém com febre excessiva, não o curaríamos de
sua doença. De fato, este homem [com a alma avarenta] tem de ser levado a ser
extravagante repetidamente até que a condição que o torna avarento seja
removida de sua alma e ele quase adquirir uma disposição extravagante. Então
faríamos com que ele parasse com as ações extravagantes e o mandaríamos
executar ações generosas constantemente. (...) Mas não o faríamos repetir ações
de avareza tanto quanto fizemo-lo repetir ações extravagantes. Esta sutileza é
a regra da terapia, e é o seu segredo. (Op.cit. p.26)
Em outras palavras, Primeiro você executa ações contrárias à
aquela que é a causa da doença da alma, para então pouco a pouco possa atingir
o equilíbrio e por fim a virtude.
Maimônides chega a dizer que: “treinamos o homem ruim para
ser muito bom, mais do que treinamos o muito bom para ser ruim. Esta é a regra
para a cura dos hábitos morais, portanto, há que lembrá-la bem.” (op.cit. p.27)
Maimônides vai notar, tal como Aristóteles (Aristóteles
enfatiza que atingir a mediania é algo extremamente difícil e que, portanto
sempre tenderíamos ora para o excesso ora para a falta) que por causa da
terapia tendemos um pouco para o excesso ou para a deficiência e lembra-nos de
algumas práticas próprias dos místicos judeus que para conseguir manter uma
constância no exercício da piedade inclinava-se para um extremo por meio de
jejuns e abstinências variadas e o afastamento da vida social.
E como bom médico lembra que essas praticas são um
tratamento para as disposições de caráter, um modo de exercitar a piedade
através da austeridade de modo que a dignidade possa ser preservada.
“Se ele vissem que – devido à corrupção das pessoas da
cidade -, seriam corrompidos através do contato e vendo suas ações e que o
contato social com eles traria corrupção aos seus próprios hábitos morais, eles
se retiravam a lugares ermos onde não havia homens ruins.” (op.cit.p. 27)
Deste modo podemos aproximar o tratamento de Maimônides à vida
retirada, cara aos estóicos para o cultivo da filosofia tornando- os aptos à
filantropia que é o amor pelo bem comum para a ética da Stóa é não muito
diferente da experiência eremítica dos monges e profetas da cultura
judaico-cristã.
Mas deixando de lado estas divagações que nos faria se
perder na exposição da cura sui de
Maimônides.
O filósofo como dizia, adverte que este exercício não precisa
ser feito por quem não está doente e cita o exemplo dos ignorantes que vêem os
que praticam estes exercícios com o fim de curar a alma, mas não sabem que se
trata de um remédio e querem imitá-los mortificando seus corpos como se Deus
contenta se com tal coisa. A metáfora empregada pelo rabino Moisés é a imagem
do homem que vê o médico tratando uma pessoa mortalmente doente com um remédio
e exigisse deste doente jejum para restabelecer a saúde e pensa que tal
tratamento o fará ter ainda mais saúde, o que não acontece, pois, com efeito,
quem está são e toma um remédio acaba adoecendo.
Percebe-se, portanto, que a busca pelo ponto de equilíbrio é
uma atividade de instrução da alma para o bem, no âmbito moral para a prática
da virtude, no âmbito antropológico para a realização da nossa humanidade, de
modo que este exercício nos torna senão plenamente apto a vida social, ao menos
o mais próximo de uma atitude humana.
O fim último de toda prática moral, da ação ética como parte
integrante dos exercícios espirituais da filosofia não é muito diferente da
experiência mística na vida religiosa.
É por isso que ele nos lembra: “De fato, o objetivo da Torá
(lei de Moisés corresponde ao Pentateuco cristão) é que o homem seja natural,
seguindo o caminho do meio. Ele deverá aderir ao meio quando come o que for seu
para comer, quando bebe o que for seu para beber e quando tiver relações
sexuais com que lhe for permitido manter relações sexuais.” (MAIMÔNIDES.Op.cit.
p.28)
Veja que a ideia é que o homem seja natural, ou seja, exercite
sua humanidade junto aos demais homens, respeitando se e respeitando os outros.
O que eu fiz comigo mesmo foi exatamente por em prática esse
tratamento aliado ao remédio estóico, claro que ainda estou no inicio do
tratamento, mas posso dizer que funciona, consegui neutralizar boa parte dos
sintomas e tratá-los, com tempo quem sabe não irei eliminá-los por completo.
BIBLIOGRAFIA:
MAIMÔNIDES. Introdução à ética dos Pais trad: Alice Frank. São Paulo: Maayanot,1992