Hoje dou continuidade a esta pequena reflexão que tem se
tornado grande, chegando a sua terceira parte.
Depois de desconstruir o amor romântico fiquei de tentar
responder sobre como seria possível uma relação pautada pela comunidade e por
uma forma de amor que assimila, portanto, a ideia de cuidado e interesse uma
forma talvez mais intensa de amizade movida pelo desejo sim, mas um desejo de
construir e partilhar a vida.
Para apresentar uma possível resposta, apresento uma
parte do relato que chegou até nós da filósofa cínica Hypparchia. Primeiro
apresentarei a tradução do texto de Diógenes Laertios no qual encontramos o
relato da escolha de Hypparchia e depois através de uma reflexão mais
filológica apresentar através do vocabulário empregado o modo como o namoro
como instituição se dá como comunidade de menor porte que começa com duas
pessoas em uma adesão de vida comum e se estende através e sobretudo com o
casamento e com a geração dos filhos. Vejamos então o relato da escolha da
filósofa.
Diógenes Laertios nos conta que: “A irmã de Metrócles, Hypparchia, também foi capturada pelos discursos
de Crátes. Ela amava os discursos e o modo de vida de Crátes, e não dava
atenção aos seus pretendentes, nem a riqueza, o bom nascimento e nem a beleza
deles lhe chamava a atenção. Pois Crátes era tudo para ela. Ela ameaçava seus
familiares dizendo que tiraria a própria vida se não fosse dada à Crátes em casamento. Então ,
Crátes foi chamado pelos pais da moça e fez de tudo, mas por fim não conseguiu
convencê-la, então ele se levantou e tirando as suas vestes diante dela disse:
‘ Este é o noivo e os seus bens, portanto, toma a tua decisão, pois não poderá
ser a minha companheira a menos que tu partilhe comigo o meu modo de viver. ’ A
moça escolheu, e adotando as mesmas roupas passou a andar com ele(..)” DL VI,
7, 96-97.
Antes que se pense que Hypparchia se apaixonou por Crátes
como se fosse um amor à primeira vista eu devo dizer que a irmã de Metrócles já
o conhecia, primeiro porque Crátes já era relativamente conhecido como filósofo
e segundo porque Crátes já havia estado na casa de Hypparchia para ajudar
Metrócles quando este pensou em se matar porque teve vergonha de um peido que pode ser visto aqui:Uma anedota cínica: O encontro de Metrócles e Crátes.
Portanto, não se trata de amor à primeira vista, mas há
implícito na narrativa através de palavras bem específicas do vocabulário grego
que examinaremos agora elementos que mostram um pouco do modo de vida de
Crátes, isto é, a vida filosófica, mais especificamente da vida do filósofo
cínico como também a relação íntima que há entre persuasão e amor se assim me é
possível dizer.
No início do
relato Diógenes Laertios nos diz que Hypparchia foi “capturada” pelos discursos
do filósofo cínico, e ele poderia dizer que foi seduzida, que foi encantada,
mas não ela foi capturada. O verbo empregado é therao que
significa: caçar, capturar, prender uma presa, laçar etc. Levando em conta que
a escola cínica é associada aos cães (Por isso, Diógenes de Sínope é também
chamado de “o cão” kynikós em grego) não
me admira que Hypparchia fosse capturada, veja que o vocabulário do relato está
ao menos na teoria e acordo com as bases fundamentais do modo de vida proposto
pela escola filosófica apresentada (Na obra “vidas e doutrinas dos filósofos
ilustres” obra da qual extraímos esta anedota sobre Hypparchia em cada livro
Diógenes Laertios agrupa os principais filósofos das principais escolas do
mundo antigo o sexto livro é dedicado aos cínicos e cada capitulo trata da vida
de um filósofo. O capitulo sétimo do livro sexto apresenta a biografia de
Hypparchia aqui traduzida). Mas isso pode ser explicado quando entendemos que
os discursos de Crátes não são apenas palavras, mas um modo coerente que une as
palavras com o modo de viver e é por isso que logo em seguida Diógenes
Laertios escreve: “Ela amava os discursos e o modo de vida de
Crátes”, Eros que é o termo mais usual para designar o amor no mundo grego
expressa mais do que afeição o desejo, em outras palavras, não é apenas achar
os discursos e o modo de vida de Crátes “bonito”, mas de desejar viver como ele
vive. (O mito de Eros imortalizado no
diálogo banquete escrito por Platão nos revela em detalhes a natureza de Eros
ligada diretamente ao impulso de ser ou ter o que ainda não é, pois, Eros seria uma espécie de divindade
intermediaria entre os homens e os deuses, sendo filho da Abundância (Poros) e da miséria (Pênia), é carente de tudo e ao mesmo tempo
possui todos os recursos para atingir seus objetivos. No diálogo Platão coloca Eros como verdadeiro filósofo pois
embora saiba alguma coisa está sempre carente de saber e por isso sempre deseja
saber mais, por outro lado a natureza desejante de Eros implica necessariamente o interesse de se aproximar, de seguir
de perto algo ou alguém, o amor é um querer assumir o outro para si.) Eu traduzo por “modo de vida” a palavra grega bíos, bíos é, com efeito, tudo aquilo que está relacionado às condições
do viver, diferente de zao
(viver) que é a vida entendida como movimento, ação no sentido mais
fundamental, por exemplo: dizemos que algo está vivo porque respira ou porque o
coração está batendo. Bíos, por outro
lado, carrega um sentido mais profundo, pois se refere às condições de
existência, tanto éticas como ecológicas (quando aplicada a biologia, por
exemplo).
Portanto, o amor de Hypparchia não era um tipo de admiração passiva
por alguém “brilhante” (Diógenes Laertios relata que Crátes era feio de rosto e
que quando se exercitava na palestra fazendo ginástica provocava o riso Cf. DL
VI, 5,91), mas uma inclinação para imitar ou seguir aquele modo de existir. E
principalmente amar os discursos e o modo de vida significa em certo sentido
amar a pessoa toda de Crátes para ser como ele, e ser um com ele. E é preciso notar ainda que o desejo de ser
como Crátes e de estar com ele era tão forte que mesmo Hypparchia sendo uma
mulher atraente e ter do ponto de vista social bons pretendentes elas sequer
lhes dava atenção ao contrário ela “Não
dava atenção aos seus pretendentes, nem a riqueza, nem ao bom nascimento, nem a
beleza dos mesmos” Estes três itens citados são importantes para a tradição
cultural do grego antigo, digamos que seja ainda hoje. Os antigos gregos
acreditavam que um homem feliz de fato era aquele que era rico, bem nascido (de
boa família, ou família nobre) e belo (bonito, pinta etc.) No entanto, o
cinismo despreza tudo isso, por considerar que todas estas coisas vêm e vão,
importa para os cínicos e depois para os estóicos que são devedores do cinismo
apenas a virtude, pois a virtude está acima da inveja, da vaidade e, é o que
realmente faz do homem um homem.
Quando Hypparchia ameaça se matar e seus pais chamam
Crátes para convencê-la a não se casar com ele temos outro dado interessante,
porque os discursos que capturaram a jovem não a fez desistir?
Como, pois um filósofo tão eloqüente não foi capaz de
dissuadir a jovem? Depois de “pant’epoíei”,
de fazer de tudo, usar todos os meios que dispunha para fazê-la desistir, ele
por fim percebe que não a persuadiu (peíthon)
e tenta um último recurso, faz o seu último lance, vai para o tudo ou nada, ele
tira a roupa na frente dela e diz que aquele manto surrado é tudo o que ele tem
e que se ela realmente quer ser sua companheira (koinonón) ela vai ter
que compartilhar (epitédeumáton) a maneira de viver. Vejam que
para o grego ser companheiro é ter em comum, a própria phília (amizade) nos
remete a ideia do “ter tudo em comum”.
Portanto, a ressalva feita por Crátes ao ver que não
tinha como persuadi-la era essa, se quiser tudo bem, mas você vai ter que ser
capaz de viver como eu vivo.
No fim, Hypparchia escolhe por Crátes e adota seu modo de
viver usando apenas um vestido e seguindo-o aonde quer que fosse.
A escolha de Hypparchia é a escolha pela comunidade, por
um amor que transcende toda a superficialidade que a atração física, a beleza
ou o bom nascimento poderiam trazer ao primeiro olhar, ela viu além nos
discursos do filósofo, viu certamente um modo de vida que mesmo difícil trazia
consigo a semente da felicidade e desejando construir esta felicidade através
da prática da virtude que é a causa de ser do cinismo, Hypparchia abraça um
modo de vida compartilhado com seu marido.
Hypparchia não conheceu a banda americana Turtles, mas
certamente repetiria o adágio: “Imagine me and you, I do (...) so happy
together” (Imagine você e eu, Eu imagino tão felizes juntos).
Tendo tratado da escolha de Hypparchia e apresentado o
quanto a sua escolha reforça que o namoro ou o casamento deve ser sempre uma
comunidade que parte da atitude livre das duas pessoas tratarei na sequência da
vida celibatária, isto é, da vida de solteiro distinguindo primeiramente o
sentido ordinário e exercitado no mundo antigo e pagão do celibato adotado no
cristianismo.
Pelo momento não há mais nada a dizer.