“Para gostar das estrelas, por acaso você precisa saber
quantas são? E para amar um homem, conhecer tudo? Ele está aí, diante de você,
perfeitamente verdadeiro, inclusive em suas mentiras, perfeitamente real,
inclusive em seus sonhos... Se você não conhecesse nada dele não poderia
amá-lo, claro; mas como seria louco querer conhecê-lo em todos os seus detalhes
(em todos os seus infelizes e inesgotáveis detalhes!) antes de amá-lo por
inteiro! O real não é um quebra-cabeça. “Espere um pouquinho, querido, mais uma
peça, mais outra, mais outra ainda, sinto que já já vou te amar plenamente...”
Não. Ele está aí, à sua frente: você o vê, você olha para ele, e já é um
quinhão inesgotável de verdades...” (Comte-Sponville, André. Amor a solidão. p.
104. Entrevista com Judith Brouste).
Muitas passagens de “Amor a solidão” merecem
comentário, passagens que falam sobre a
filosofia, sobre o desespero, sobre Deus e o nada, e outras passagens sobre o
amor, mas essa em particular me chamou a atenção. E por que? Talvez porque
enquanto eu lia o opúsculo sponvilliano, eu tenha percebido o quanto ele me
influenciou, junto é claro com outros pensadores. Vejam, meu primeiro contato
com Sponville foi em 2003 com o livro “A felicidade desesperadamente” (que na
verdade é uma palestra e não um tratado) e desde então meu modo de ver a vida
mudou, é certo que não de todo, mas mudou.
Mas eu só percebi a mudança quando, finalmente conheci o
estoicismo e o cinismo, foi com o estoicismo e o cinismo é que me aproximei
mais da sabedoria, principalmente pelas semelhanças com o cristianismo. É
verdade que Platão e Aristóteles tiveram e ainda tem grande influencia sobre o
meu modo de pensar, mas com essa dose de austeridade, ou antes, de simplicidade
a ser buscada para a vida feliz.
Com efeito, me encontrei o suficiente nessa passagem de
“Amor a solidão” para me recordar da lição estóica de que nada pertence ao
sábio, senão a virtude, explico o que se passa.
Ao ler esse trecho me lembrei de que nem mesmo o amor que não é posse,
mas é convivência livre e interessada tão somente na convivência e em nada mais, me pertence. Logo, todo amor que espero receber deve ser pautado pelo desejo de
estar junto com, como lembra Vinícius de Morais no Soneto de fidelidade: “Rir o
meu riso ou derramar o meu pranto, ao seu pesar ou contentamento”. Essa
passagem evoca o malogro causado pelo medo de se envolver, de mergulhar no
mistério do amor, porque conhecer como lembra o filósofo francês “todos os
infelizes e inesgotáveis detalhes” de alguém é impossível, e nisso consiste o
mistério, ou seja, o amor é um mergulho que fazemos no mistério do outro,
mistério que só é acessível se o outro se permite penetrar pelo desejo da
partilha do “quinhão da vida”.
Portanto, quem posterga o amor não sabe conviver, nem
consigo mesmo e nem com os outros, uma coisa é, claro, não haver espaço no
projeto de alguém para a partilha da vida, seja porque o trabalho e os estudos
impossibilitem o nascituro de uma relação, ou por outro lado, há aqueles que se
escondem em projetos, que criam obstáculos, mundos paralelos e com isso
malogram a dádiva do convívio, perde a oportunidade do aprendizado com o
diferente e do exercício da humilde, simples vivência do cotidiano.
Amar alguém é amar a pessoa toda e não apenas aquilo que
salta aos nossos olhos, e por isso o amor é desejo de mergulhar no mistério
do outro, e é por isso também que o amor não é fragmentado, quem ama uma parte
ou uma ideia que faz de alguém não a ama de fato.
Não é como procurar as peças de um quebra-cabeça para montar
uma imagem do outro que você seria capaz de amar, porque no fundo sempre haverá
algo do outro a ser conhecido, ele sempre vai te revelar algo de novo, ou de
antigo, mas de outro modo.
E nisso Sponville tem toda razão, quem que ao apreciar a beleza das estrelas se preocupa
em conhecer todas? Primeiro que é impossível mesmo com todo aparato tecnológico
conhecer de fato todas as estrelas, o universo é imenso e o homem em sua
pequenez é imenso também, esse microuniverso que é o homem é demasiado complexo
para que possamos conhecer todos os detalhes do seu ser e, no entanto, o real
esta aí diante de você com todas as dimensões que possui: mentiras, verdades,
sonhos e aspirações.
Foi aí que me dei conta do quanto Sponville me influenciou,
pois quando falo de amor-amizade falo justamente dessa inclinação para a
partilha da vida, para o mergulho nesse mistério que é o outro que se revela
para nós em inteireza e não é fragmentado, ainda que a pessoa mude seu
comportamento ou algo novo seja descoberto a pessoa nunca deixa de ser o que
ela é, mesmo que muitas vezes nem ela mesma saiba sobre aquela virtude ou
defeito que possui.
E qual é o melhor lugar para se redescobrir do que o
mergulho em si, mergulhando no mistério do outro? Como não saber quais são os
seus limites na tensão que há na relação com o outro, com a pessoa que você
escolhe partilhar a vida, fazer projetos e conviver. O outro é como um espelho
que nos liga ao mundo. Desde que o que nós somos não seja massacrado pela
relação, quando deixamos de viver a nossa existência, nossa vida pela vida do
outro, porque o amor é sempre partilha de, é partilha de solidão, é partilha de
boa vontade, é partilha de intimidade e de desejo. Quem faz do outro um
quebra-cabeça foge de si mesmo, porque projeta no outro suas frustrações e seu
medo, é um procrastinador da própria felicidade, tem medo de amar e medo de
viver o amor por ter medo de se ferir.
No entanto, a beleza do amor está justamente no risco de se ferir,
no risco de vivê-lo. Jesus correu esse risco e Hypparchia ( para quem quiser conhecer a história de Hypparchia só vir aqui: A escolha de Hyppachia) também e foi assim
que encontraram a felicidade, descobriram ao seu modo a sabedoria de vida ou o
saber viver. O ágape, a caridade, é aquela que nos impele ao serviço, é
justamente a face benevolente do amor. A
phília, a amicitia, é esse desejo que reconhece o outro como um como nós, como
alguém com quem vale a pena conviver e dividir cada novidade, cada alegria e
cada tristeza; as flores dos jardins, os sorrisos recebidos e as lágrimas colhidas.
Nesse sentido não importa se o outro te ama como você ou se você vai ser
correspondido, porque a correspondência vem justamente do desejo da partilha e
tudo o mais é acrescentado pelo desejo da vida comum. Em outras palavras, a
reciprocidade é a marca que dá valor ao amor, e então, quem ama
sintomaticamente quer estar junto, quer
construir junto, quer partilhar as mínimas coisas e as coisas grandiosas da
vida e é aí que surge a cumplicidade e o medo desaparece, não é que vamos
confiar cegamente, mas na medida em que há o desejo de unidade comum a
confiança mútua fortalece a relação e o medo permanece, mas em menor grau, pois
se sabe de algum modo que a mão do outro está sempre próxima para te ajudar a
levantar quando você cair.