Não sei se a autora do
best-seller que foi adaptado ao cinema “If I stay” (Se eu ficar) leu
Aristóteles, mas será por Aristóteles que quero começar a nossa reflexão.
O filósofo grego lança a seguinte pergunta na Ética a
Nicômacos: “Portanto, nenhum (oudéna)
homem (anthrópon) deverá ser
considerado feliz (eudaimonistéon)
enquanto viver, mas será preciso ver o fim (télos),
como afirma Sólon? (EN I, 1100a 10).
Para entendermos o questionamento do filósofo de Estagira é
necessário contar o que pensa Sólon o grande jurista e um dos sete lendários
sábios da Grécia antiga a respeito da felicidade (eudaimonia) e para isso vou transcrever um relato transmitido pelo
pai da história Heródoto de Halicarnasso.
Conta-nos Heródoto que certa vez
Sólon hospedado no palácio de Croisos e questionado pelo rei de Sárdis a
respeito de quem era o homem mais feliz de seu tempo (o próprio Croisos se
julgava o mais feliz dos homens e por isso havia feito a pergunta) a resposta
dada por Sólon ao rei de Sardis que motivou a pergunta de Aristóteles é a
seguinte: “No curso de uma longa vida podemos ver muitas coisas de que não
gostamos, e também sofrer muito. Calculo em setenta anos a duração máxima da
vida humana; esses setenta anos correspondem a vinte e cinco mil e duzentos
dias, sem contar os meses intercalares. (...) e, podemos dizer perfeitamente
que nenhum desses dias é igual ao outro naquilo que nos traz. Então, Croisos, o
homem é apenas incerteza. Parece-me que és muito rico e rei de muitos homens,
mas não poderei responder à tua pergunta antes de ouvir dizer que tenha
terminado bem a tua vida. Em verdade, o homem muito rico não é mais feliz do
que aquele que tem apenas o suficiente para o dia de hoje, a não ser que a sorte
(tyché) continue a lhe ser
fiel até o fim de sua vida; proporcionando-lhe todas as boas coisas.”
(Heródoto, História I, 32). Podemos parar por aqui na transcrição do relato
herodotiano da conversa entre Sólon e Croisos, pois, tudo o que precisamos para
a nossa reflexão está aqui e ademais a continuação do texto resulta em uma
resposta bastante fatalista da condição humana e não contempla o horizonte
reflexivo à que o filme nos faz pensar.
O drama escrito por Gayle Forman
conta a história de uma jovem que sofre um acidente e fica em coma, ela precisa
resolver se quer ficar ou se quer partir. O coma da protagonista do drama
coloca-a em um estado em que ela não está viva (está viva clinicamente sem
morte cerebral ou sem parada cardíaca e ou respiratória), mas também não está
morta, coma nesse caso pode ser lido como uma metáfora da suspensão que te
coloca entre esses dois caminhos possíveis, as duas extremidades da estrada. O
coma nesse caso é perfeito para a pergunta de Aristóteles e incrivelmente
perfeito para a resposta de Sólon. Porque o que vai guiar a decisão da jovem
Mia é a percepção que ela faz do mundo através do binômio prazer-dor que
perpassa os momentos experimentados por ela e as notícias que ela “recebe”
enquanto está em coma.
Perguntar sobre o que nos motiva a continuar a viver é
perguntar sobre o sentido da vida, os gregos quando faziam a pergunta sobre o
sentido da vida de certa forma estavam perguntando sobre o que é a felicidade (eudaimonia) e o que é o bem viver (euzein).
Hoje em dia quando falamos em
felicidade sempre nos remetemos a um aspecto subjetivo da nossa percepção de
mundo, felicidade é sinônimo de alegria, bem-estar é sinônimo de alegria, no
entanto, para os antigos gregos e para o cristianismo a felicidade não é um
mero estado de alegria- euforia, mas é um complexo de alegrias e tristezas, a
felicidade para os gregos e para a filosofia antiga e, mesmo para o
cristianismo está diretamente relacionada à concepção de homem e de humanidade.
Aristóteles e Platão, os estóicos, cínicos e os cristãos entendem a felicidade
como o resultado final da realização última da nossa humanidade e não uma
coletânea de fragmentos soltos de euforia e de melancolia.
Quando Schopenhauer em seu célebre
texto sobre o sofrimento do mundo escreve: (cito de memória) “Se o sentido da
vida não está no sofrimento, então, a vida é um grande contra senso, pois,
percebemos mais a dor do que o prazer.” Está querendo nos dizer que a sensação
de dor perdura enquanto a de prazer se dissolve no instante, posso citar ainda
a anedota contada por Diógenes Laertios
a respeito de Aristipo de Cirene célebre discípulo de Sócrates e
fundador do hedonismo, conta-se que certa vez, Aristipo levou seus discípulos a
um prostíbulo e um dos seus discípulos teria lhe perguntado se ir àquele lugar
não era um problema ao que Aristipo lhe respondeu que “ o problema não era ir,
mas sair de lá”. Para Aristipo, assim como para Epicuro alguns séculos depois a
felicidade coincide com o prazer, essa tese será reapresentada por alguns
filósofos modernos e contemporâneos como os utilitaristas, tanto Schopenhauer
quanto Aristipo nos dão de forma radical
e cada um ao modo uma explicação que desde o início da filosofia é objeto de
investigação e fundamentação da ação (aqui entendida no sentido geral moral)
basicamente todas as teorias da ação abordam de alguma forma a influencia que o
prazer e a dor possui sobre as escolhas que fazemos e que orientam a nossa
vida.
Portanto, é importante ter em
mente ao fazermos a pergunta sobre o que nos motiva a viver, é ter em mente o
que nos impele a agir e a viver e como essa motivação nos faz viver bem e ou
nos torna realmente felizes.
Mia se defronta com inúmeras
experiências boas e ruins, e algo irá motivar a sua escolha.
Vejam que não são experiências fragmentadas, memórias soltas
e, embora as lembranças aparentam se dar assim, a jovem protagonista, mas cada
memória e cada experiência é fruto de uma experiência presente da jovem em
estado de coma. As visitas que ela recebe e as notícias que chegam até ela até
a experiência final que vai culminar com a sua escolha, será esse conjunto
complexo que oferecerá como uma janela a visão do valor da vida e se é melhor
ficar vivo ou não.
Ainda cabe cita uma das falas da
ficção que mais gosto a conversa entre Kenshin e seu mestre Hiko Seijuuro antes
de aprender a técnica suprema do estilo Hiten Mitsurugi ryu, nessa fala Hiko
Seijuuro sintetiza o que tentei apresentar sobre a felicidade como relacionada
a nossa realização enquanto ser humano. Kenshin também é posto entre a vida e a
morte em seu treinamento e é instado a pensar se viver vale ou não a pena.
Hiko Seijuuro diz ao seu pupilo:
“Antes de começarmos, tem uma coisa que eu preciso dizer. Essa Era não é tão
simples a ponto de você poder colocar tudo em seus ombros, e ser o único
sacrificado. E, ao mesmo tempo, a felicidade de uma pessoa não é tão simples
também. Se você for se tornar um sacrifício, uma garota que veio de Tokyo
apenas para te ver vai encarar um infortúnio, Lembre-se disso. Não importa o
quão forte você fique, você é só um ser humano não há necessidade de se tornar
Buda (santo) ou um assassino.” Em outras palavras, dizer que a felicidade não é
simples significa dizer a felicidade não acontece só quando tudo dá certo para
você, você vai brigar com o seu melhor amigo, vai perder um ente querido, vai
terminar com a sua ou seu namorado (a), vai conhecer outra pessoa e iniciar um
novo relacionamento, vai experimentar coisas novas, como ir a um lugar que você
nunca tenha ido, ouvir músicas diferentes, ir a uma Peça de teatro, enfim serão
tantas experiências que só o discernimento, e é aí que entra filosofia (não a filosofia acadêmica de
artigos e livros com citações rigorosas), mas a filosofia como uma educação
para o julgar/ discernir (esse é o sentido verdadeiro do verbo grego krino que deu origem a palavra
crise) e essa filosofia é extremamente necessária para que possamos de algum
modo compreender a questão de sentido e descobrir o que nos impele a continuar
vivos.
Mia a personagem dotada de
sensibilidade encontrou a sua resposta será que você será capaz de encontrar a
sua?
A resposta da filosofia ensina que o homem é dotado de duas
instâncias, de intelectualidade e afetividade e essas duas instâncias devem se
desenvolver juntas, Sólon nos dá uma resposta fatalista, pois, o mundo em que
ele vivia não oferecia segurança o suficiente para garantir que um homem rico
ou pobre pode ser de fato feliz pela sua condição mais fundamental, creio que
ainda hoje o mundo não é tão seguro para nos dá uma resposta tão fácil como queria
Croisos rei de Sárdis.
O caminho para encontrar resposta pode vir não de um estado de
suspensão como o coma, mas do reconhecimento da vida como um dom em sua
complexidade na qual cada experiência única revela a preciosidade que a nossa
finitude nos reserva.
Fica aqui o convite à reflexão, e aí: o que te motiva a
viver?