No quinto livro de suas Histórias,
Heródoto, relata a tentativa de restituir a tirania na cidade de Atenas, e deste
modo, suprimir a isonomia recém implantada com a derrocada do filho de Pisístrato,
Hípias. Os espartanos querendo suprimir a força que a isonomia deu aos
atenienses reúne seus aliados e lhes propõe restituir a tirania conferindo
poder novamente a Hípias, porém, Sócles de Corinto nos apresenta o que
realmente é a tirania como forma de governo, isto é, como constituição. Para este
coríntio a tirania é um mal que deve ser evitado de modo que um governo entre
os iguais (isokratia) possa
prevalecer como melhor regime político. Vejamos o discurso de Sócles e, então,
compreender o que é a tirania e em que medida ela é a constituição da
injustiça.
“Sócles de Corinto disse o seguinte: Em verdade, o céu vai
ficar por baixo da terra e a terra vai parar por cima do céu, os homens vão
morar no mar e os peixes morarão onde antes havia homens, pois vós, lacedemônios,
destruindo a isocracia, estais em preparativos para restabelecer nas cidades a
tirania, de todas as instituições existentes entre os homens a mais injusta e
sanguinária. Se achais realmente um bem para as cidades a submissão a tiranos,
começai por instalar um deles entre vós mesmos, antes de tentar instalá-los entre
outros povos; agora, porém quereis introduzir tiranos erradamente entre vossos
aliados, sem tê-los conhecido por experiência própria, enquanto exerceis a
vigilância mais estrita para evitar a sua instalação em Esparta; se tivésseis experiência
deles, como nós, poderíeis trazer-nos opiniões mais sábias que as presentes
sobre o assunto.” (HERÓDOTO, História V,92).
A afirmação de Sócles começa por constatar que os espartanos
desejavam para os outros algo que não desejavam para si próprios, isto é, a
limitação do poder político traduzido como liberdade e exercício pleno da
cidadania, no entanto, essa liberdade e cidadania não é uma liberalidade, pois
a isocracia pressupõe uma constituição que equalize a desigualdade sem que constituição seja destruída. A legislação isocrática reconhece na instituição de deveres e
direitos uma igualdade que fortalece as relações do cidadão com a sua
comunidade política. Aquilo que os gregos chamavam de democracia, e os latinos
de república é uma constituição isocrática por excelência na medida em que a
legislação se colocava como mecanismo regulador do poder político, ou na medida
em que a lei dá ordenamento e, portanto, regulamenta a forma de fazer política
impedindo que indivíduos ou grupos políticos usassem do poder para constranger
e reprimir os demais cidadãos. Com efeito, os espartanos desejavam não para si,
mas para os seus inimigos a tirania, pois esta cerceava a liberdade dos cidadãos
por meio de coerção violenta e desse modo impedia o crescimento e
desenvolvimento daquela comunidade política subjugada pelo tirano. Por outro
lado, a fala de Sócles revela que a tirania se fosse boa seria desejada pelos
espartanos como regime político ideal, mas na verdade os espartanos eram
extremamente rigorosos para minar qualquer possibilidade de se levantar um
tirano entre eles. Isso nos mostra que a tirania só é benéfica para quem
usufrui do poder que ela concede, em outras palavras, a tirania faz jus ao
ditado popular: “pimenta nos olhos dos outros é colírio”. A tirania é nesse
sentido um regime totalitário, em que poder é exercido com violência por um ou
mais cidadãos deformando a constituição vigente retirando direitos e imprimindo
deveres que ferem o princípio isocrático outrora presente na constituição. Sócles continua
seu discurso falando de Cípselos e seu filho, ambos tiranos que governaram
Corinto com mãos de ferro vejamos um pouco mais de seu discurso aos espartanos.
“Depois de Cípselos ter-se tornado tirano transformou-se no
seguinte tipo de homem: ele baniu muitos coríntios, despojou muitos de seus
bens e tirou a vida de um número ainda maior. Após reinar durante trinta anos e
levar uma existência entremeada até o fim de dias felizes, Cípselos foi
sucedido por seu filho Períandros. Inicialmente, Períandros foi mais brando que
seu pai, mas após travar relações através de mensageiros com Trasíbulos, tirano
de Mileto, passou a ser ainda mais cruel que Cípselos. Ele (Períandros) tinha
mandado um arauto a Trasíbulos, com a missão de saber do mesmo a maneira mais
segura de pôr em ordem todos os assuntos da cidade e melhor governá-la. Trasíbulos
levou o arauto de Períandros para fora da cidade e entrou em sua companhia num
campo cultivado; percorrendo um trigal, ele
interrogava repetidamente o arauto a respeito de sua vinda de Corinto, e
ao mesmo tempo cortava todas as espigas que aos seus olhos pareciam ultrapassar
as outras em altura;uma vez cortadas essas espigas, Trasíbulos jogava-as no chão,
até que, agindo dessa maneira, havia destruído as espigas mais belas e mais
carregadas de grãos entre todas as existentes na seara. Percorrido o campo, e
sem dar uma palavra sequer de conselho, Trasíbulos mandou o arauto embora.
Quando este regressou a Corinto Períandros procurou ansiosamente saber qual
tinha sido o conselho tão esperado. O arauto apenas respondeu que Trasíbulo não
lhe havia dado conselho algum; ele manifestou estranheza pelo fato de Períandros
tê-lo mandado procurar um homem como aquele, desequilibrado e destruidor de
suas próprias coisas, e em seguida relatou o que vira Trasíbulos fazer. Períandros
compreendeu o sentido desse procedimento, e percebeu que o conselho de Trasíbulos
era mandar matar os cidadãos que sobressaíssem entre os outros; e desde então
ele mostrou toda espécie de malignidade em relação aos coríntios. Tudo que Cípselos
havia deixado inacabado em matéria de assassínio e banimento Períandros
terminou. (...) Isso é a tirania, lacedemônios, e assim ela age. (...)
Conjuramo-vos, em nome dos deuses dos helenos, a não instituir tiranos nas
cidades. Não desistireis de vossos desígnios e ireis insistir, contra a
justiça, em trazer Hípias
de volta? Ficai sabendo, então, que ao menos os coríntios não concordam
convosco.” (HERÓDOTO, Histórias V,92).
Nesse longo relato de Sócles de Corinto podemos ver a
natureza da tirania e porque a sua instituição fere a justiça e a isocracia. O
tirano exerce o seu poder como império, isto é com força excessiva, com violência.
Para assegurar o seu poder ele retira o poder dos demais, não tolera aqueles
que se sobressaem e que, portanto, podem se destacar dos demais. Desse modo,
cria dispositivos para suprimir os direitos e impondo o dever de obedecer sob
coação, por meio de pilhagem na forma ou não de impostos abusivos e
desapropriação de bens. A igualdade é sempre colocada para outros de modo que o
tirano esteja sempre acima dos demais e acima da constituição que deve sempre
lhe beneficiar. O tirano é, em suma, desequilibrado pela sede de poder e por não
ter a lei como régua e como limite para o exercício do poder.
Toda forma de ditadura é tirania, porque vê a constituição
como um simples acessório e não como a carta magna que regula a vida da
comunidade política. Usa-a para atingir o poder, mas limita ou modifica a mesma
constituição para se perpetuar no poder. Além, de desejar controlar todas as
forças institucionais do Estado para si e, assim ter o controle sobre tudo e
sobre todos, dizer o que é o certo e o que errado eliminando toda possibilidade
de diálogo, abrindo brecha para a corrupção ao agregar um poder absoluto.