sábado, 25 de julho de 2015

A Lição de Heródoto: A tirania como constituição da injustiça

No quinto livro de suas Histórias, Heródoto, relata a tentativa de restituir a tirania na cidade de Atenas, e deste modo, suprimir a isonomia recém implantada com a derrocada do filho de Pisístrato, Hípias. Os espartanos querendo suprimir a força que a isonomia deu aos atenienses reúne seus aliados e lhes propõe restituir a tirania conferindo poder novamente a Hípias, porém, Sócles de Corinto nos apresenta o que realmente é a tirania como forma de governo, isto é, como constituição. Para este coríntio a tirania é um mal que deve ser evitado de modo que um governo entre os iguais (isokratia) possa prevalecer como melhor regime político. Vejamos o discurso de Sócles e, então, compreender o que é a tirania e em que medida ela é a constituição da injustiça.

“Sócles de Corinto disse o seguinte: Em verdade, o céu vai ficar por baixo da terra e a terra vai parar por cima do céu, os homens vão morar no mar e os peixes morarão onde antes havia homens, pois vós, lacedemônios, destruindo a isocracia, estais em preparativos para restabelecer nas cidades a tirania, de todas as instituições existentes entre os homens a mais injusta e sanguinária. Se achais realmente um bem para as cidades a submissão a tiranos, começai por instalar um deles entre vós mesmos, antes de tentar instalá-los entre outros povos; agora, porém quereis introduzir tiranos erradamente entre vossos aliados, sem tê-los conhecido por experiência própria, enquanto exerceis a vigilância mais estrita para evitar a sua instalação em Esparta; se tivésseis experiência deles, como nós, poderíeis trazer-nos opiniões mais sábias que as presentes sobre o assunto.” (HERÓDOTO, História V,92).

A afirmação de Sócles começa por constatar que os espartanos desejavam para os outros algo que não desejavam para si próprios, isto é, a limitação do poder político traduzido como liberdade e exercício pleno da cidadania, no entanto, essa liberdade e cidadania não é uma liberalidade, pois a isocracia pressupõe uma constituição que equalize a desigualdade sem que constituição seja destruída. A legislação isocrática reconhece na instituição de deveres e direitos uma igualdade que fortalece as relações do cidadão com a sua comunidade política. Aquilo que os gregos chamavam de democracia, e os latinos de república é uma constituição isocrática por excelência na medida em que a legislação se colocava como mecanismo regulador do poder político, ou na medida em que a lei dá ordenamento e, portanto, regulamenta a forma de fazer política impedindo que indivíduos ou grupos políticos usassem do poder para constranger e reprimir os demais cidadãos. Com efeito, os espartanos desejavam não para si, mas para os seus inimigos a tirania, pois esta cerceava a liberdade dos cidadãos por meio de coerção violenta e desse modo impedia o crescimento e desenvolvimento daquela comunidade política subjugada pelo tirano. Por outro lado, a fala de Sócles revela que a tirania se fosse boa seria desejada pelos espartanos como regime político ideal, mas na verdade os espartanos eram extremamente rigorosos para minar qualquer possibilidade de se levantar um tirano entre eles. Isso nos mostra que a tirania só é benéfica para quem usufrui do poder que ela concede, em outras palavras, a tirania faz jus ao ditado popular: “pimenta nos olhos dos outros é colírio”. A tirania é nesse sentido um regime totalitário, em que poder é exercido com violência por um ou mais cidadãos deformando a constituição vigente retirando direitos e imprimindo deveres que ferem o princípio isocrático  outrora presente na constituição. Sócles continua seu discurso falando de Cípselos e seu filho, ambos tiranos que governaram Corinto com mãos de ferro vejamos um pouco mais de seu discurso aos espartanos.

“Depois de Cípselos ter-se tornado tirano transformou-se no seguinte tipo de homem: ele baniu muitos coríntios, despojou muitos de seus bens e tirou a vida de um número ainda maior. Após reinar durante trinta anos e levar uma existência entremeada até o fim de dias felizes, Cípselos foi sucedido por seu filho Períandros. Inicialmente, Períandros foi mais brando que seu pai, mas após travar relações através de mensageiros com Trasíbulos, tirano de Mileto, passou a ser ainda mais cruel que Cípselos. Ele (Períandros) tinha mandado um arauto a Trasíbulos, com a missão de saber do mesmo a maneira mais segura de pôr em ordem todos os assuntos da cidade e melhor governá-la. Trasíbulos levou o arauto de Períandros para fora da cidade e entrou em sua companhia num campo cultivado; percorrendo um trigal, ele  interrogava repetidamente o arauto a respeito de sua vinda de Corinto, e ao mesmo tempo cortava todas as espigas que aos seus olhos pareciam ultrapassar as outras em altura;uma vez cortadas essas espigas, Trasíbulos jogava-as no chão, até que, agindo dessa maneira, havia destruído as espigas mais belas e mais carregadas de grãos entre todas as existentes na seara. Percorrido o campo, e sem dar uma palavra sequer de conselho, Trasíbulos mandou o arauto embora. Quando este regressou a Corinto Períandros procurou ansiosamente saber qual tinha sido o conselho tão esperado. O arauto apenas respondeu que Trasíbulo não lhe havia dado conselho algum; ele manifestou estranheza pelo fato de Períandros tê-lo mandado procurar um homem como aquele, desequilibrado e destruidor de suas próprias coisas, e em seguida relatou o que vira Trasíbulos fazer. Períandros compreendeu o sentido desse procedimento, e percebeu que o conselho de Trasíbulos era mandar matar os cidadãos que sobressaíssem entre os outros; e desde então ele mostrou toda espécie de malignidade em relação aos coríntios. Tudo que Cípselos havia deixado inacabado em matéria de assassínio e banimento Períandros terminou. (...) Isso é a tirania, lacedemônios, e assim ela age. (...) Conjuramo-vos, em nome dos deuses dos helenos, a não instituir tiranos nas cidades. Não desistireis de vossos desígnios e ireis insistir, contra a justiça, em trazer Hípias de volta? Ficai sabendo, então, que ao menos os coríntios não concordam convosco.” (HERÓDOTO, Histórias V,92).

Nesse longo relato de Sócles de Corinto podemos ver a natureza da tirania e porque a sua instituição fere a justiça e a isocracia. O tirano exerce o seu poder como império, isto é com força excessiva, com violência. Para assegurar o seu poder ele retira o poder dos demais, não tolera aqueles que se sobressaem e que, portanto, podem se destacar dos demais. Desse modo, cria dispositivos para suprimir os direitos e impondo o dever de obedecer sob coação, por meio de pilhagem na forma ou não de impostos abusivos e desapropriação de bens. A igualdade é sempre colocada para outros de modo que o tirano esteja sempre acima dos demais e acima da constituição que deve sempre lhe beneficiar. O tirano é, em suma, desequilibrado pela sede de poder e por não ter a lei como régua e como limite para o exercício do poder.

Toda forma de ditadura é tirania, porque vê a constituição como um simples acessório e não como a carta magna que regula a vida da comunidade política. Usa-a para atingir o poder, mas limita ou modifica a mesma constituição para se perpetuar no poder. Além, de desejar controlar todas as forças institucionais do Estado para si e, assim ter o controle sobre tudo e sobre todos, dizer o que é o certo e o que errado eliminando toda possibilidade de diálogo, abrindo brecha para a corrupção ao agregar um poder absoluto.

E, se, portanto, a justiça é conferir a cada um o que é seu, a isocracia seria em termos de constituição a forma mais justa e a tirania o seu oposto, pois impede por meio da violência que cada um desenvolva seus talentos naturais, isto é, se sobressair de forma justa amparado pela constituição e a legislação que regula na forma da lei qual é o critério que torna justo ou injusto o crescimento de alguém. A igualdade perante a lei equaliza por meio da lei o que é naturalmente desigual. Conferindo direitos e deveres iguais a todos conscientizando cada cidadão da sua responsabilidade por fazer da sua comunidade política uma comunidade mais justa e menos violenta.