terça-feira, 25 de setembro de 2018

Intransigência ou morte da democracia - A lição do diálogo entre os atenienses e os mélios


No quinto livro da História da Guerra do Peloponeso encontramos o famoso diálogo entre os atenienses e o mélios. Nesse diálogo se discutia a adesão de Melos, uma colônia espartana na guerra do Peloponeso. Os atenienses exigiam que os mélios se aliassem aos áticos contra os lacedemônios. Isso significava que os atenienses queriam que os mélios lutassem contra seus patronos, uma vez que Melos era uma colônia lacedemônia ou espartana, isto é, os mélios eram espartanos que migraram para aquela ilha do mediterrâneo. Tendo isso em vista esse diálogo sempre foi visto como manifestação de poder, tirania e intransigência.

 O uso da palavra como mecanismo de cerceamento da liberdade, neste caso de todo um povo que queria ficar neutro na guerra. A imagem remontada por Tucídides em sua História da Guerra do Peloponeso é a imagem que com tristeza vejo no debate baixo que avança com a força da desinformação e da má vontade que as partes que tomam a frente no diálogo insistem em sustentar com seu autoritarismo velado pela aura de pretensa virtude, sabedoria e lugar privilegiado. Não obstante, tudo isso é aparência e vaidade, na verdade por onde quer que eu vá encontro a soberba e arrogância, a falta de bom senso e a incapacidade para o diálogo aberto em que os interlocutores tentem passar da discordância à concessão e da concessão ao consenso, como aliás deveria ser em todo os debate. Por que isso ocorre? Será que fomos tomados pela cultura da pós verdade? Tentarei responder essa questão em outro lugar. Mas deixo a questão aos meus leitores imitando a prática comum dos humoristas de stand up comedy: “Se você não conhece na sua roda de amigos alguém assim, eu tenho uma má notícia, meu caro, pois você...”

Não pretendo reproduzir todo o diálogo nesse texto porque tornaria a leitura enfadonha, vou apenas pontuar algumas passagens para expor algumas ideias sobre intransigência no debate e o uso da força por meio da palavra.
Tucídides nos conta que tão logo os mélios tiveram a palavra nessa conversa com os emissários atenienses disseram:

“Vemos, com efeito, que viestes para serdes vós mesmos os juízes do que devemos dizer, e o resultado do debate é evidente: se vencermos na discussão por ser justa a nossa causa, e então nos recusarmos a ceder, será a guerra para nós; se nos deixarmos convencer, será a servidão” (TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso V, 86).

O trecho acima reflete a falta de possibilidades em aberto no debate minando a escolha real e substituindo-a por opções impostas pelo interlocutor. Os mélios queriam ficar em paz sem guerrear, os atenienses não vislumbravam essa opção. E impuseram aos mélios a guerra ou a escravidão. É muito comum no debate público com pessoas engajadas com proposições de caráter partidário impor ciladas retóricas para fazer violência com seu interlocutor, uma pratica sofística muito comum, por sinal. Atualizando a constatação dos mélios, para o cenário do debate público atual poderíamos identificar a guerra com o assassinato sumário da reputação do interlocutor, e a servidão com a anulação total de sua consciência de liberdade para escolher quais ideias defende, ou mesmo não se posicionar em relação à guerra discursiva.
Outra coisa muito comum no debate violento é a resposta dos atenienses a essa constatação dos mélios que reproduzo abaixo:

“Ora, se fordes levantar suspeitas, por conjecturas, a propósito do que poderá acontecer no futuro, ou se tendes outro propósito além de deliberar sobre a salvação de vossa cidade à luz dos fatos evidentes diante de vossos olhos, pararemos; se , ao contrário, este último é o vosso objetivo, falaremos” (TUCÍDIDES, História da Guerra do Peloponeso V, 87).

Na conjuntura agonística do debate público quem recorre aos artifícios violentos tende a agredir qualquer receio, dúvida ou insegurança do interlocutor frente ao que lhe é proposto. Normalmente ridiculariza e debocha do posicionamento hesitante do interlocutor, por aqui, temos o famoso “isentão”. O moderado certamente será tido como “isentão”, primeiro, porque não é dado aos arrombos de paixão, e tampouco a cegueira que a militância pode oferecer a quem por ela se deixa possuir.

Nesse caso a intransigência se manifesta como incapacidade de escuta, limitando o campo argumentativo do interlocutor que só pode jogar com as peças que o seu adversário fornece. No Eutidemo de Platão, isso é muito claro quando os sofistas perguntam aos interlocutores, mas estes só podem responder segundo as regras que os dois sofistas estabeleceram. Desse modo, o diálogo ganha contornos de um jogo em que duas pessoas estão disputando para vencer, mas apenas uma tem chances reais de vitória.

O intransigente se recusa a aceitar as motivações de seu interlocutor, seu objetivo é debater sem razão, fazer barulho ou uma cortina de fumaça para desviar o objeto debatido.
Transforma o debate em um campo de batalha, chama a si mesmo de “virtuoso” e o outro de “inimigo a ser vencido”, vê-se numa arena onde as palavras são armas com as quais o seu adversário deve ser batido.
O intransigente tem alma de tirano. É autoritário, não aceita objeções e recusa a refutação com base em argumentos sólidos.
Por isso, se o interlocutor rejeita seu argumento ele é agredido, e se o acolhe se torna subserviente. Não há caminho para liberdade de consciência nesse gênero de embate argumentativo. Há, apenas, ataque frontal a dignidade da pessoa na forma de um grotesco ad hominem (sofisma em que o usuário ataca o interlocutor e não suas ideias) ou retirando a emancipação do mesmo. Em ambos os casos, eu retiro a humanidade do interlocutor e o reduzo a coisa ou nada.

Esse tipo de conduta precisa ser combatido no debate público, precisamos aprender a debater ideias, recorrendo ao ferramental lógico em primeiro lugar e os instrumentos da boa retórica como dizia Platão no Fedro.  Do contrário, estaremos sujeitos a sujeição num debate em que a violência se torna o único argumento válido para sustentar o meu ponto de vista.

Brener Alexandre 25/09/2018

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Hooligans: do esporte a política


Anos atrás repetíamos o adágio: “brasileiro devia discutir política como discute futebol”. Se soubéssemos o tamanho da bobagem contida nesta sentença, já haveríamos de nos arrepender de tratar um assunto tão sério com leviandade.
Não só não deveríamos discutir política como se discute futebol, como não deveríamos sequer discutir o futebol como se discute futebol.

A paixão, a afetividade desempenha um papel fundamental no estádio de futebol, inflama o torcedor que canta, vibra positivamente ou não reagindo aos atores em cena. Dentro do estádio, na roda de amigos durante o jogo, ou mesmo num bar. Antes do jogo, ou depois dele o que deve imperar é a razão. Esse precioso elemento que por vezes esquecemos ou simplesmente ignoramos quando falamos de futebol. O torcedor não pode ser só afetividade, não pode ser só coração, precisa da racionalidade para ler os fatos e ser justo com o seu time, o adversário e a arbitragem.

Conhecemos o fenômeno do hooliganismo no esporte marcando a atuação vergonhosa dos torcedores violentos. Violência física, violência verbal. Constranger e intimidar essas são as características do hooligan. No Brasil poderíamos usar a expressão “clubismo” como essa espécie de violência, pois, o clubista vê apenas as cores do seu clube, percebe apenas as necessidades do seu time do coração, pensa apenas nas vantagens que podem beneficiar o seu time. São violentos? Não, o são fisicamente (quero dizer em geral não o são), mas o são ideologicamente, pois são incapazes de diálogo. Não conseguem confrontar ideias e olhar sob perspectivas diferentes. Dito de outro modo, o clubista faz violência a sua maneira quando fecha os olhos para a realidade dos fatos em nome das cores do time do coração.

Infelizmente, importamos esse comportamento para o debate público, suspeito que ele já existia muito antes da polarização na qual estamos inseridos em tempos hodiernos.  E que agora com as mídias sociais e o acirramento do debate público esse comportamento tenha ganhado proporções que devem nos levar a refletir sobre o nosso modo de debater ideias.
As discordâncias fazem parte do regime democrático, não há democracia onde há unanimidade, não há democracia onde não há contraditório. Platão no diálogo Sofista escreve: “O pensamento é um diálogo de si consigo mesmo” (cito de memória). O pensamento é dialógico, precisa ver outras perspectivas, precisa do contraditório para se encaminhar à verdade. Se o raciocínio é um diálogo, quanto mais não o seria o debate de ideias?
No entanto, o que presenciamos no debate público é o que Platão chamou no diálogo Eutidemo de “mistérios sofísticos” onde os argumentos dançam, rodopiam e se entrelaçam para agredir e derrubar o interlocutor. Na peça platônica Eutidemo e seu irmão instrumentalizam o discurso para atingir um único fim: vencer. Não se trata de ter razão, não se trata de expor a verdade, trata-se de ganhar a discussão, no grito, por meio da violência.

Se debatêssemos as razões (motivações) das pessoas e as refutássemos com base em outras motivações legítimas teríamos, então, um debate saudável em torno de ideias e construiríamos uma democracia sólida onde as instituições nos orientariam para o império da lei. Discordaríamos sim, o que é natural em uma democracia sólida, porém, sob o império da lei e da razão aprenderíamos com nossas discordâncias, estabeleceríamos consenso e repudiaríamos os excessos. Se não podemos ser tolerantes com os intolerantes como escreveu Popper, também não podemos tolerar os abusos contra as instituições e a violência generalizada no debate público que assassina reputações, cerceia liberdades individuais e reduz ao silêncio cidadãos que estão cumprindo seus deveres e tem seus direitos respaldados pela constituição.

Não podemos aceitar mais que os hooligans pautem o debate público, é preciso enriquecer o diálogo para enriquecer a democracia incipiente brasileira.
E só podemos fazer isso se mudarmos nossa forma de discutir política, isto é, deixando as paixões de lado, o “clubismo” partidário-ideológico, e como Sócrates na República de Platão em diálogo franco com Polemarco buscando a justiça reveza com seu interlocutor por que um bem tão importante não pode ser ocultado por nenhuma das partes como o filósofo explicou para o sofista Trasímaco.
Em suma, ou mudamos a forma de debater ideias condenando ao ostracismo a violência que segrega quem pensa diferente ou, então, jamais construiremos uma república de fato em nosso país.

Brener Alexandre 20/09/2018