No
quinto livro da História da Guerra do Peloponeso encontramos o famoso diálogo
entre os atenienses e o mélios. Nesse diálogo se discutia a adesão de Melos,
uma colônia espartana na guerra do Peloponeso. Os atenienses exigiam que os
mélios se aliassem aos áticos contra os lacedemônios. Isso significava que os
atenienses queriam que os mélios lutassem contra seus patronos, uma vez que Melos
era uma colônia lacedemônia ou espartana, isto é, os mélios eram espartanos que
migraram para aquela ilha do mediterrâneo. Tendo isso em vista esse diálogo
sempre foi visto como manifestação de poder, tirania e intransigência.
O uso da palavra como mecanismo de cerceamento
da liberdade, neste caso de todo um povo que queria ficar neutro na guerra. A
imagem remontada por Tucídides em sua História da Guerra do Peloponeso é a
imagem que com tristeza vejo no debate baixo que avança com a força da
desinformação e da má vontade que as partes que tomam a frente no diálogo
insistem em sustentar com seu autoritarismo velado pela aura de pretensa
virtude, sabedoria e lugar privilegiado. Não obstante, tudo isso é aparência e
vaidade, na verdade por onde quer que eu vá encontro a soberba e arrogância, a
falta de bom senso e a incapacidade para o diálogo aberto em que os
interlocutores tentem passar da discordância à concessão e da concessão ao
consenso, como aliás deveria ser em todo os debate. Por que isso ocorre? Será
que fomos tomados pela cultura da pós verdade? Tentarei responder essa questão
em outro lugar. Mas deixo a questão aos meus leitores imitando a prática comum
dos humoristas de stand up comedy: “Se você não conhece na sua roda de amigos
alguém assim, eu tenho uma má notícia, meu caro, pois você...”
Não
pretendo reproduzir todo o diálogo nesse texto porque tornaria a leitura
enfadonha, vou apenas pontuar algumas passagens para expor algumas ideias sobre
intransigência no debate e o uso da força por meio da palavra.
Tucídides
nos conta que tão logo os mélios tiveram a palavra nessa conversa com os
emissários atenienses disseram:
“Vemos,
com efeito, que viestes para serdes vós mesmos os juízes do que devemos dizer,
e o resultado do debate é evidente: se vencermos na discussão por ser justa a
nossa causa, e então nos recusarmos a ceder, será a guerra para nós; se nos
deixarmos convencer, será a servidão” (TUCÍDIDES, História da Guerra do
Peloponeso V, 86).
O
trecho acima reflete a falta de possibilidades em aberto no debate minando a
escolha real e substituindo-a por opções impostas pelo interlocutor. Os mélios
queriam ficar em paz sem guerrear, os atenienses não vislumbravam essa opção. E
impuseram aos mélios a guerra ou a escravidão. É muito comum no debate público
com pessoas engajadas com proposições de caráter partidário impor ciladas
retóricas para fazer violência com seu interlocutor, uma pratica sofística
muito comum, por sinal. Atualizando a constatação dos mélios, para o cenário do
debate público atual poderíamos identificar a guerra com o assassinato sumário
da reputação do interlocutor, e a servidão com a anulação total de sua
consciência de liberdade para escolher quais ideias defende, ou mesmo não se
posicionar em relação à guerra discursiva.
Outra
coisa muito comum no debate violento é a resposta dos atenienses a essa
constatação dos mélios que reproduzo abaixo:
“Ora,
se fordes levantar suspeitas, por conjecturas, a propósito do que poderá
acontecer no futuro, ou se tendes outro propósito além de deliberar sobre a
salvação de vossa cidade à luz dos fatos evidentes diante de vossos olhos,
pararemos; se , ao contrário, este último é o vosso objetivo, falaremos” (TUCÍDIDES,
História da Guerra do Peloponeso V, 87).
Na
conjuntura agonística do debate público quem recorre aos artifícios violentos
tende a agredir qualquer receio, dúvida ou insegurança do interlocutor frente
ao que lhe é proposto. Normalmente ridiculariza e debocha do posicionamento
hesitante do interlocutor, por aqui, temos o famoso “isentão”. O moderado
certamente será tido como “isentão”, primeiro, porque não é dado aos arrombos de
paixão, e tampouco a cegueira que a militância pode oferecer a quem por ela se
deixa possuir.
Nesse
caso a intransigência se manifesta como incapacidade de escuta, limitando o
campo argumentativo do interlocutor que só pode jogar com as peças que o seu
adversário fornece. No Eutidemo de Platão, isso é muito claro quando os
sofistas perguntam aos interlocutores, mas estes só podem responder segundo as
regras que os dois sofistas estabeleceram. Desse modo, o diálogo ganha
contornos de um jogo em que duas pessoas estão disputando para vencer, mas
apenas uma tem chances reais de vitória.
O
intransigente se recusa a aceitar as motivações de seu interlocutor, seu
objetivo é debater sem razão, fazer barulho ou uma cortina de fumaça para
desviar o objeto debatido.
Transforma
o debate em um campo de batalha, chama a si mesmo de “virtuoso” e o outro de “inimigo
a ser vencido”, vê-se numa arena onde as palavras são armas com as quais o seu
adversário deve ser batido.
O
intransigente tem alma de tirano. É autoritário, não aceita objeções e recusa a
refutação com base em argumentos sólidos.
Por
isso, se o interlocutor rejeita seu argumento ele é agredido, e se o acolhe se
torna subserviente. Não há caminho para liberdade de consciência nesse gênero
de embate argumentativo. Há, apenas, ataque frontal a dignidade da pessoa na
forma de um grotesco ad hominem (sofisma em que o usuário ataca o interlocutor
e não suas ideias) ou retirando a emancipação do mesmo. Em ambos os casos, eu
retiro a humanidade do interlocutor e o reduzo a coisa ou nada.
Esse
tipo de conduta precisa ser combatido no debate público, precisamos aprender a
debater ideias, recorrendo ao ferramental lógico em primeiro lugar e os instrumentos
da boa retórica como dizia Platão no Fedro.
Do contrário, estaremos sujeitos a sujeição num debate em que a
violência se torna o único argumento válido para sustentar o meu ponto de
vista.
Brener
Alexandre 25/09/2018