terça-feira, 30 de outubro de 2018

Flash reverso – ou a reviravolta dos ressentidos




“Cuidado com os dragões, pois, ao enfrenta-los você pode se tornar como um deles” (provérbio chinês).

Quem gosta de quadrinhos e de super-heróis certamente conhece o personagem “Flash” (Há uma seriado em curso do canal CW) da D.C Comics. Personagem conhecido como “velocista escarlate” tem na sua galeria de vilões um nêmesis, Eobard Thawne, o flash reverso. O flash reverso é o oposto do Flash. Eobard Thawne tinha profunda admiração por Barry Allen (identidade do herói de Central City) e converteu essa admiração em ressentimento convertendo-se em um dos maiores vilões do universo D.C responsável por um dos eventos mais famosos envolvendo não apenas o Flash, mas toda a liga da justiça (falo do flashpoint que altera a linha do tempo ao preservar a vida da mãe de Barry Allen – há uma animação sobre esse episódio.). O leitor deve está curioso e se pergunta: “Por que ele começou falando de um personagem de quadrinhos?” “Aonde você quer chegar com isso, amigo?” A resposta é simples.

Findado o processo eleitoral pude observar com mais atenção o comportamento das duas forças em disputa neste processo eleitoral. E tenho percebido que essa disputa eleitoral tem um pouco da rivalidade Flash – Flash reverso, explico.

Ao que parece boa parte do anti-petismo, não o é porque rejeita o porte autocrático do partido, porque discorda ideologicamente do partido, ou porque reconhece que no limite a administração petista deixou a desejar.

Trata-se antes de um antagonismo que mistura admiração e ressentimento, uma mistura perigosa onde a força da minha contraposição tem origem do que eu gostaria de fazer e não posso, mas na primeira oportunidade de fazer eu farei igual.

Durante as eleições isso ficou nítido no embate entre as forças das respectivas militâncias. Os bolsonaristas aprenderam e assimilaram o modus operandi das militâncias de esquerda e as replicou sistematicamente, o que empobreceu o debate público.
Agora, percebemos que no discurso e em muitas atitudes fica manifesto o interesse de restringir o discurso de oposição ao discurso vitorioso nas eleições.
É verdade que a esquerda vai precisar aprender a conviver com o pensamento divergente nas instituições de ensino particularmente e no debate público em geral. Mas esse processo é lento e gradual e exige das duas forças um respeito primordial as instituições da república, mais, precisa baixar o tom, pois a eleição terminada requer de todos atenção para acompanhar a transição do novo governo.

O bolsonarismo se vendeu como uma alternativa ao petismo, mas não pode ser igual ao petismo que eles combateram com altivez. Precisarão se apresentar à sociedade como defensores do direito de discordar, aprender a expor suas ideias com serenidade e, sobretudo, defender as instituições da república. Promover a livre circulação de ideias, enaltecendo a vida intelectual, a liberdade de cátedra e o direito de discordar.
Do contrário, o bolsonarismo tal qual Thawne, será um flash ao contrário, nesse caso um petismo ao contrário, ou nas palavras de Janaina Paschoal: “um PT com sinal trocado”; com tendências autocráticas e pouco republicanas.

Desse modo, cabe a cada um que menos preocupado em escolher um lado e mais preocupado em defender as liberdades individuais garantidas pelo princípio de cidadania constitucional não se deixar levar pelos gritos histéricos de nenhum dos lados, mas com os pés no chão resistir tal qual Odisseu resistiu ao canto das sereias aos encantos do ativismo míope que tem solapado o debate e criando na cultura política do país um ambiente propenso a truculência daqueles que só se fazem ouvir pela força.

Brener Alexandre 30/10/2018

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Sócrates, o isentão



“Se eu tivesse me envolvido na política, teria sido conduzido à morte há muito tempo e não teria feito nenhum bem a vós ou a mim mesmo” (PLATÃO, Apologia 31e).
O termo “isentão” cunhado para desmerecer eleitores moderados que a priori não assumem um posicionamento político claro e evidente, poderia ser claramente atribuído a Sócrates no episódio celebre por ele mesmo contado através de Platão, na qual ele não parte para o exílio junto com os membros do partido popular quando a tirania dos trinta foi instaurada em Atenas.

O relato da instauração da tirania dos trinta pode ser encontrado na Constituição de Atenas de Aristóteles tal como segue abaixo:
Uma das cláusulas do tratado de paz (da guerra do Peloponeso) estipulava que o Estado fosse por eles governado de acordo com a Constituição dos ancestrais (provavelmente a constituição de Sólon). Em consonância com isso o partido popular empenhou-se em preservar a democracia. Os notáveis, porém, integrantes das associações políticas, bem como exilados que já retornavam à pátria após a celebração da paz, almejavam a oligarquia; quanto aos notáveis não pertencentes às associações políticas, mas que em outros aspectos não se julgavam inferiores a quaisquer outros cidadãos, estavam interessados em restaurar a Constituição dos ancestrais. (...) Quando Lisandro se posicionou a favor do partido oligárquico, o povo sentiu-se pura e simplesmente intimidado e forçado a votar em favor da oligarquia (ARISTÓTELES, Constituição de Atenas, 34).

Tendo o povo aceitado a oligarquia como regime de governo a tirania dos trinta assumiu o controle na cidade e segundo Aristóteles: “Senhores do Estado, ignoraram no seu governo a maioria das resoluções que haviam sido aprovadas com referência à Constituição” (ARISTÓTELES, Constituição de Atenas, 35). A consequência imediata da displicência dos oligarcas no que tange a fazer cumprir a Constituição tal qual acordada pelos atenienses é descrita pelo Estagirita abaixo:
Inicialmente, agiram com moderação no trato dos cidadãos e simularam administrar o Estado de acordo com a Constituição dos ancestrais. (...) De início, portanto, ocupavam-se dessas atividades, na eliminação dos fraudadores e daqueles que se associavam de maneira indesejável ao povo lisonjeando-o e não passavam de indivíduos maldosos e patifes. Diante de tudo isso, a cidade mostrava-se muito satisfeita, no pensamento de agiam alimentando as melhores intenções. Mas tão logo consolidaram um controle ainda mais firme do Estado, não pouparam nenhuma classe de cidadãos, condenando à morte e executando aqueles que se distinguiam seja pela riqueza, seja pelo nascimento, seja pela reputação. Com isso visavam a eliminar todos que eles tinham motivo para temer,(...) (ARISTÓTELES, Constituição de Atenas, 35).

Notamos um exemplo bastante eloquente de como um regime constitucional e estabelecido por consenso e voto se torna gradativamente um regime autoritário e autocrático. Não obstante assumir ou não uma posição diante desse estado de coisas parece inevitável para qualquer um. Sócrates não assumiu um lado, não apoiou a tirania e tampouco se retirou de Atenas com os membros do partido popular. Sócrates não tinha partido, era inteiro. O filósofo procurava a justiça e não a deixava de lado por medo da morte, seja no período em que Atenas era uma democracia sob o governo do partido popular, seja na oligarquia com a tirania dos trinta.

O próprio Sócrates diz: “jamais me curvaria, por medo da morte, a qualquer pessoa que contrariasse o que é justo, preferindo morrer a curvar me” (PLATÃO, Apologia 32a). E o que é justo para Sócrates? O filósofo mesmo explica: “ter a lei e a justiça ao meu lado” e completa “ a aliar-me a vós, quando vos empenhavas num procedimento injusto” (PLATÃO, Apologia 32c). Quando Atenas ainda era uma democracia o filósofo se recusou a votar pelo julgamento coletivo dos generais que falharam na batalha de Arginusa, pois tal procedimento era ilegal subentenda inconstitucional.

Quando Atenas é tomada pela oligarquia os tiranos que se tornaram “senhores do Estado” tentavam implicar em seus crimes vários cidadãos, dentre os quais Sócrates. Em um desses casos os tiranos exigiram de Sócrates e outros cidadãos que buscassem um homem, Leon de Salamina, no exílio para ser executado. Enquanto, muitos cidadãos movidos pelo medo saíram de Atenas para cumprir a ordem dos tiranos Sócrates simplesmente retornou para a sua casa como nos relata Platão: “Aquele governo, por mais poderoso que fosse, não me intimidou no sentido de realizar algo injusto. Entretanto, quando saímos da rotunda, os outros quatro dirigiram-se a Salamina e prenderam Leon. De minha parte, limitei-me a voltar para a minha casa” (PLATÃO, Apologia 32d).

Quando somos persuadidos pela razão que nos inclina para a justiça a força que pode quebrar o corpo, manchar superficialmente a sua reputação, não pode retirar de nós a virtude. Compreender no momento atual que estamos entre a cruz e a espada é sensato. Mas não peça a ninguém que escolha entre um e outro movido pelo medo, ou pelo ódio aos adversários. Ficar a meio caminho para observar o que acontece com atenção não é covardia, é prudência! Buscar a mediania não é tibieza é sensatez! Reconhecer as limitações dos discursos e exigir das partes que sejam melhores do que se mostram é justo e legítimo, mais legítimo inclusive do que fazer do debate público uma arena de MMA.

E se é preciso ficar e resistir porque “ ao longo da minha vida, em qualquer atividade pública em que possa ter me engajado sou o mesmo homem que da vida privada. Jamais compactuei com alguém para uma ação injusta” (PLATÃO, Apologia 33a ). Eu preciso lembrar constantemente que sou míope. De que preciso trocar os óculos com os quais vejo o mundo regularmente. Então, preciso constantemente avaliar minhas escolhas, me limpar de minhas contradições, reduzi-las ao máximo e ser dentro do que a minha limitada e defeituosa condição humana permite que eu seja.

Por isso, inspirado mais uma vez na história antiga, na filosofia antiga busco para a razão um remédio que permita que eu veja e faça a outros que vejam também se querem enxergar a realidade que não se curvem a tiranos. Que não abracem a tirania de nenhum tipo. Porque seus seguidores mordazes ganharam terreno e se alimentaram do que tínhamos de sonhos, se alimentaram como dementadores da nossa tristeza, e incentivaram como sith a escuridão que escondemos de nós mesmos.

Não desmereçamos os “isentões” são eles, como eu, que irão decidir essas eleições. Inclinando se ou não a um dos extremos, ou permanecendo no centro indicando que nenhum dos dois extremos agradam à república e o verdadeiro Estado democrático de direito.
Brener Alexandre 23/10/2018