quarta-feira, 25 de junho de 2014

Entre o miserável e o sábio: confissões filosóficas

"Portanto, se algum desses que invectivam contra a filosofia repetir o seu refrão habitual: ‘Por que, em suas palavras, há mais energia do que em sua vida? Por que você abaixa o tom de voz diante de um superior, e acha que o dinheiro é um meio necessário, abala-se com um prejuízo, chora ao ficar sabendo da morte da esposa ou da morte de um amigo, cuida de sua reputação e se deixa afetar por boatos malévolos? (...) Mais adiante, eu irei ainda mais longe do que suas invectivas e farei a mim mesmo mais recriminações do que você imagina; por ora, eis o que lhe respondo: Eu não sou um sábio e (para que a sua malevolência fique feliz) nunca serei. Exija, pois, de mim, não que seja igual aos melhores, mas apenas melhor que os maus; a mim me basta cortar a cada dia um pouco dos meus vícios e repreender os meus extravios. Eu não fiquei completamente bem de saúde, e nem vou conseguir ficar; estou fabricando para a minha gota antes paliativos do que remédios, feliz se os ataques se tornam menos freqüentes e as dores menos fortes; mas comparado com os seus pés, eu, débil, sou um corredor. Digo isso, não por mim (pois, estou submerso em todos os vícios), mas por aquele que conseguiu alguma coisa. " Sêneca, Sobre a vida feliz XVII,1.3-4.

Enquanto lia a obra: Sobre a vida feliz me deparei com essa passagem que me tocou bastante, por se tratar  de uma confissão pessoal de um homem que experimentou as vicissitudes da vida, o que engloba a boa e a má fortuna. Então, eu quis também engrossar o coro dos que se reconhecem como um homem “submerso em todos os vícios” e “ruim demais para saber acolher as graças de Deus” e lembrar com Diógenes que “aspirar à filosofia também é filosofar”.

Posso dizer não sem indignação contra a mim mesmo, que também eu estou nessa luta, e ciente de que a minha saúde me oprime bem mais do que eu gostaria e, sabendo o quanto é difícil manter com coragem o ânimo diante de tantos combates com o único propósito de me manter vivo, de sobreviver.

A verdade é que até o momento tenho buscado uma infelicidade serena certo de que só assim poderei almejar uma felicidade modesta. Galgando cada passo de uma vez, caindo e tropeçando, cego e surdo, com dores eu vou caminhando resistindo em silêncio, e bradando no meu íntimo contra a minha existência, certo de que se tenho alguma virtude, creio que seja a coragem, mas não porque sei o que se deve temer ou não, como ensina o Sócrates do diálogo Protágoras, mas porque em tal estado insisto em enfrentar a vida quando poderia muito bem entregar os pontos e dar o último suspiro. Tudo o que posso fazer é tentar amenizar a dor e na medida do possível e com bravura me colocar diante dos meus vícios e das minhas misérias, creio que esse é o gesto mais corajoso que um homem pode ter. Penso realmente que este é um ato de coragem legítimo, pois, que reconhecer suas fraquezas, seus medos e saber-se miserável é prova senão de virtude, ao menos, prova de que a ama, assim como se ama a verdade.

Eu que sou débil, e manco, que sou o mais miserável dos homens procuro acompanhar os passos de homens e mulheres melhores que eu, e vou caindo como se não soubesse andar direito atrás desses verdadeiros seres humanos pensando que se ao menos conseguir acompanha-los serei senão feliz, ao menos, menos infeliz. Porque a chance que tenho ao segui-los de me tornar menos patife e mais homem é maior do que se eu simplesmente ignorasse todos os meus vícios e pensasse que sou a encarnação da virtude.

Creio que como o Eros de Platão, eu também, estou entre o pior dos homens e o mais divino deles, o pior porque sou miserável e o divino porque aspiro ao que de melhor o homem pode almejar para si e para os outros. Se, com efeito, eu fraquejo diante da dor não pense que é por covardia, é antes porque a virtude ainda me falta e a sabedoria mais do que tudo. Ciente da minha ignorância procuro ser menos pedra de escândalo para os outros consciente de que ainda o sou para mim mesmo.

Então, quando me ver fraquejar e sucumbir aos meus medos, quando ver que eu estou chorando e bradando contra a existência não me julgue como se julga o sábio e o verdadeiro homem de virtude, porque o que estará diante dos seus olhos é apenas um homem miserável atolado até o pescoço em seus vícios que está tentando a todo custo sair do lamaçal. No mais das vezes enfrento tudo isso sozinho: o silêncio, a noite escura, os medos, o pânico e tento agir com o mínimo de covardia e o máximo de coragem que a pouquíssima virtude que adquiri me permitir.
Por isso, peço desculpas através na forma de uma confissão filosófica sincera, não porque eu mereça desculpas, mas porque a verdade me impele a ser sincero e franco comigo mesmo antes de tudo, pelas vezes que fraquejei e ainda irei fraquejar, pelas vezes que ainda irei tombar diante dos meus inimigos, pelas vezes que ainda irei bradar contra a minha existência, até que lutando as batalhas diárias afim de vencer a guerra da vida eu possa, ao menos, alcançar a infelicidade serena e tranquila e quem sabe poder me dar o luxo de aspirar a felicidade modesta.

E, se não sou capaz de ser amigo da minha solidão, é por fraqueza e não por covardia, se almejo sua companhia é mais por amizade do que por desejo, e se amei mais a pessoa do que a mulher que dá forma a pessoa é porque vi na mulher mais do que pode ser desejado e menos do que é digno de ser frequentado pela afinidade que o simples desejo oferece.

Um dia espero que entenda que aos amigos o maior bem e o aos inimigos um bem maior ainda, é o que o homem mais miserável deve desejar quando consciente de suas misérias e pecados. Vence-se um vício por vez e quando todos os vícios se amontoam contra o homem de bem ele se vê em grande perigo, pois que cercado e impelido pela coragem não pode largar a lança e o escudo, mas deve enfrentá-los ao preço de morrer aniquilado pelo tormento do fracasso diante de um inimigo mais numeroso e que usa da vileza para vencer ao invés da justiça.

Eu também, não sou sábio e se sou filósofo o sou por amar o saber e não por ser sábio.
Sou filósofo porque optei por ser justo ainda que nem sempre consiga sê-lo e, por fim, optei por ser filósofo porque optei por ser humano ainda que não entenda o que isso realmente significa.