sexta-feira, 7 de julho de 2017

Amor secular e amor cristão - A linha de passagem entre duas formas de amar

Amor secular e amor cristão – A linha de passagem entre duas formas de amar

Vi perambulando pelas redes sociais a seguinte frase: “Uma geração de jovens com menos de 18 anos com a vida emocional destruída por buscar um amor em pessoas, um amor que só encontramos em Jesus”. Deparei-me com dois problemas ao ler essa frase, uma de ordem ética e outra de ordem teológica. E gostaria de refletir sobre esses dois problemas para que possamos entender o porquê dessa frase não exprimir de modo adequado aquilo que os apóstolos, principalmente São Paulo ensinaram sobre a vida cristã e o amor tal qual é compreendido no cristianismo.

Começarei pelo problema teológico, pois ao resolvê-lo o problema ético se dissolverá quase que automaticamente. A questão teológica que se coloca de forma problemática na frase citada diz respeito ao conceito “amor” usado no texto.  A palavra amor é usada com dois sentidos distintos ao falar dos jovens que tem a vida emocional destruída por buscar “amor em pessoas”, o autor fala do amor cuja perfeição provém de Deus, mas que nas relações humanas se dá sempre de modo imperfeito. Desse modo o amor manifestado entre os jovens é nesse caso um amor romantizado, idealizado e carregado de “erotismo”. Por erotismo não é necessariamente o conjunto de práticas que chamaríamos de “sexuais”, mas um conjunto de práticas que envolvem a atração, física e ou intelectual que gera e desperta o interesse entre os jovens.
Enquanto o amor em sua forma acabada e que só pode ser “encontrado em Jesus” seria algo superior, e portanto, jamais se encontraria nessas relações imperfeitas. A concepção teológica que estamos esboçando nessa análise remete diretamente no plano existencial, pois os jovens estão tentando preencher um vazio de ordem existencial com um amor imperfeito. Por outro lado, esse preenchimento só é possível e encontrado em Jesus. Tal é a situação- problema que se apresenta para nós.

O grande problema teológico que se coloca no que tange o conceito de amor é que a vida cristã é orientada desde o início da Igreja para refletir nas relações interpessoais o amor de Jesus. Isso é ainda mais evidente quando compreendemos a dimensão comunitária da Santíssima Trindade na qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo se tornam o modelo comunitário por excelência baseado na relação de amor e equidade de todos para com todos. Desse modo, o amor secular é sempre imperfeito, mas não o é porque meramente não reflete essa relação trinitária perfeita, mas porque o amor secularizado principalmente na sua dimensão erótica é sempre amor interessado, ao passo que o amor na sua forma acabada é sempre desinteressado. Há outro aspecto que não nos pode escapar de vista, o sentido hebraico, vale dizer, dentro da tradição judaica da palavra “amor” é bastante diferente dos usuais grego e latino.

Vamos resgatar esse sentido? Para entendermos o sentido bíblico-teológico do amor na vida cristã. No livro do Deuteronômio encontramos “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças” (Dt 6,5). E em Levítico está escrito “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18). Esses dois trechos da lei de Deus são retomados pelo evangelista Lucas e introduzem a parábola do bom samaritano (Cf. Lc 10, 25-37). A parábola ensina o que é ser “próximo” de alguém, e entender essa lição implica compreender o significado do amor pedido pela lei de Deus. Um amor que não é um mero gostar, um simples sentimento, mas é um agir de santidade que se expressa como “fazer bem”, oferecer o melhor que somos e possuímos para o outro. O primeiro Mandamento é uma radicalização do segundo quanto a intensidade, pois só a Deus é reservado um amor e cuidado que tome todo o nosso ser. Ao próximo cabe fazer o bem que fazemos a nós mesmos. Assim, o reconhecimento ético do outro como próximo passa pelo fazer-se próximo do outro.

Desse modo a regra de ouro (Cf. Mt 7,12) exprime o aspecto ético dos mandamentos divinos, uma ética profundamente teológica em que o amor não tem por primazia uma afetividade ingênua, mas um agir movido pela santidade. Santidade exigida pelo próprio Deus: “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus sou santo” (Lv 19,2). Santidade que o evangelista Mateus traduziu como perfeição. “Sede, portanto, perfeitos como vosso pai celeste é perfeito” (Mt 5,48) e Lucas traduz por misericordioso: “sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Ambos evangelistas traduzem a santidade, pois a perfeição de Deus se exprime como santidade na forma da justiça seja dentro do horizonte legalista que Mateus quer combater ou de Lucas que escreve a Teófilo um amigo seu de origem grega. No caso de Lucas a perfeição de Deus se manifesta principalmente em sua capacidade de se compadecer dos homens, coisa que no horizonte religioso da Grécia pagã era algo inconcebível. Seja em uma concepção filosófica das religiões pagãs, seja na religião tradicional a divindade jamais se importaria com os seres humanos. Para a compreensão filosófica um deus que se importa com mortais não preenche o requisito perfeição, pois sendo uma divindade só poderia se preocupar com coisas eternas e perfeitas como ele mesmo. E para a religião tradicional os deuses são em suma egoístas demais para se importarem com mortais, para eles meros acessórios que satisfazem suas vontades pelo culto ou pelos seus próprios interesses. Em outras palavras, os evangelistas ao compreenderem que a santidade é uma perfeição que se exprime como justiça e misericórdia abrem um novo caminho ético que estava presente na cultura judaica, mas que ainda não havia ganhado o significado universal que o cristianismo por si só pode alcançar.

Portanto, há uma intima relação entre o amor a ser encontrado em Jesus que o texto sugere e a prática desse mesmo amor entre pessoas que aderem ao cristianismo. A própria sacramentalidade do matrimônio depende da prática desse amor, pois o matrimônio é o sacramento que imita a relação unitiva entre Cristo e a Igreja (sem contar a relação de complementaridade expressada em Gn 2,24). A natureza teológica do amor é fundamental para todas as relações cristãs no âmbito pessoal e social e precisa ser cultivada como parte de um exercício que tem Deus como fonte da qual brota a referência do justo e do direito expressos no modo de ser de Deus em sua essência e constituição ontológica e não como meros acidentes ou atributos que complementam o que Deus é.

Traduzindo em miúdos se levássemos essa frase as últimas consequências somente religiosos que se dedicam inteiramente a vida religiosa (consagrados, padres etc) encontrariam esse amor de que a frase fala com tanta leviandade. Afinal, nas relações entre pessoas dificilmente encontraremos esse amor abstrato. No entanto, quando aprendemos a ser “imitadores de Deus como filhos queridos” como pede o apóstolo Paulo aos efésios que insiste “vivei no amor, como Cristo também nos amou e se entregou por nós como oferenda e sacrifício de suave odor” (Ef 5,1-2), então, nos tornamos capazes de experimentar esse amor que é “benfazejo; não é invejoso, não é presunçoso nem se incha de orgulho” (1Cor 13,4).

O grande problema dos jovens com mais ou menos de 18 anos no que se refere ao amor, sejam cristãos ou não cristãos, é que transformam o ato de amar em algo imanente e totalmente voltado para a satisfação de si. Até mesmo as amizades tem se válido desse modus operandi e faz com que os laços se tornem muito finos e efêmeros começam e somem sozinhos. Nas relações interpessoais o cristão é convidado a amar como Cristo ama a Igreja ou o próximo (Cf. Ef 5,25 e Jo 15,12). O amor secular busca obter benefício em todos os sentidos possíveis. Normalmente tem caráter imanentista e recusa ou diminui o papel de um ser transcendente como modelo que orienta a ação e garante sentido.

A frase, entretanto, exprime em um sentido mais fraco (que creio ter sido a intenção de seu autor) uma verdade inegável. Em Jesus encontramos o modelo do amor de Deus que devemos imitar. Nele os jovens, adultos e idosos e crianças encontram a forma basilar e mais perfeita do amor que é justamente o bem querer e o bem fazer que nos faz próximos uns dos outros. É preciso, portanto, fazer a passagem do amor secular para o amor cristão. Os cristãos são chamados desde o batismo a viver essa experiência que nos santifica. A santidade não é um alto grau que nos separa do resto da humanidade e que nos permite julgar e condenar os que não alcançaram esse estado de vida, ao contrário, a santidade é um convite à virtude na qual nunca estamos totalmente conscientes da nossa santidade e a vemos sempre como processo de uma caminhada que precisa ser feita em íntima relação com Deus (na oração e na vida mística) e que deve refletir nas nossas relações interpessoais fazendo valer os mandamentos de Deus como o pedido de um pai que quer ver seus filhos se dando bem uns com os outros. Se possível gostaria de retornar a esse tema, mas por hora ficaremos por aqui.


Brener Alexandre 07/07/2017