Tucídides escreveu no início de
sua História da Guerra do Peloponeso
que: “quem quer que deseje ter uma idéia
clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a
ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em conseqüência de seu
conteúdo humano, julgará a minha história útil e isso bastará. Na verdade ela
foi feita para ser um patrimônio sempre útil, e não uma composição a ser ouvida
no momento da competição por algum prêmio.” (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso I,22).
Tucídides nos ensina que o
trabalho memorial da história se preza a nos ajudar a compreender o fenômeno
humano, tanto dos que já aconteceram, quanto dos que podem voltar a se
manifestar. Nesse sentido a história é um saber dinâmico que sempre se volta
para o passado para compreender o presente e evitar um futuro desastroso para
todos.
Por isso ao invés de simplesmente recorrer à filosofia
enquanto saber perene que nos convida à krísis,
vale dizer, nos convida à reflexão crítica da realidade me senti na necessidade
de recorrer à história para que aprendendo com ela possa fazer filosofia da
história e na história e não apenas história da filosofia.
Ao invés de procurar os fatos da história
recente vou dialogar com um homem muito mais velho que o nosso país para falar
do nosso atual momento político. Como foram os gregos que nos legaram um modo
peculiar de fazer política e com isso me refiro à democracia, pois, de fato, os
mais adequados para nos ensinar o caminho para compreender que toda a forma de
despotismo e tirania nos conduz a um estado inferior ou de subserviência que
contraria qualquer regime que se pretende democrático são os antigos gregos.
A democracia é o regime político
da contradição e do contraditório e só é possível pelo exercício da palavra, do
direito à palavra. E, enquanto lugar privilegiado do exercício da fala e do
embate pela palavra precisa ser por meio do amparo da lei, com liberdade e verdade
para se consolidar como governo do povo e para o povo. Por isso a análise feita
por Foucault (quem tiver o interesse de ler mais sobre o assunto temos as
traduções da Martins Fontes das obras de Foucault: Hermenêutica do sujeito, Governo
de si e governo dos outros e A
coragem da verdade) da parresía é
de suma importância para a compreensão da democracia como forma de governo em
que o poder é exercido pelo uso da palavra. Foucault nos ensina analisando a
tragédia Íon que a parresía se
manifesta primeiro como isegoria,
isto é, como direito igual à palavra perante a lei. Depois a parresía vai significar mais que ter o
direito à palavra na àgora (isso é o
que significa isegoria literalmente),
mas significará dizer o que pensa (nesse sentido a parresía já começa a ser
associada a franqueza, sinceridade) e se nos voltarmos para alguns relatos de
discussões feitos por Tucídides em sua História da Guerra do Peloponeso perceberemos
uma identificação da parresía
enquanto o exercício livre da fala e da liberdade de se exprimir como a doxa, vale dizer, com a opinião.
O pensar aqui não é o criterioso
pensar filosófico, mas é o pensar no sentido de o que está na cabeça do
falante, por isso equivale a opinião, posto que a opinião exprime uma convicção
do falante. Quando olhamos para essas duas acepções da parresía percebemos como a fala é mecanismo para a manutenção do
poder na democracia antiga (que como todos sabem é participativa e não
representativa). Será com a filosofia que a parresía
estará associada com o falar a verdade, mais do que ter direito à palavra e
exprimir sua opinião, mais do que poder dizer o que pensa o parresíasta agora é
aquele que diz a verdade e a diz com franqueza, fala abertamente a todos (no
cristianismo a parresía também
carrega todos esses traços delineados até aqui. Por exemplo em Jo 11,14 o
evangelista escreve: “Tóte oun eipen
autois ho Iesous parresía” e ‘Então Jesus lhes disse abertamente’). Quando
a parresía se torna sinônimo de ter coragem para dizer a verdade, daí o titulo
de um dos cursos de Foucault: “A coragem
da verdade” no lembra como esse conceito está imbricado pela política e
particularmente pela democracia. Ora, como eu disse anteriormente uma das
características da democracia é o contraditório e as contradições que não estão
presentes só nas pessoas, mas no próprio regime democrático. E a vida política
na antiguidade é permeada pelo exercício da cidadania principalmente quando a
assembléia se reunia na àgora (praça
do mercado). A parresía, enquanto,
franqueza e verdade se opõe diametralmente a retórica e a bajulação, posto que
a verdade é fim em si mesmo, isto é, é
uma revelação que embora possa ser útil a todos pode ser extremamente perigosa
para quem a diz. A retórica é o instrumento maior para quem pretende domar a
assembléia é a ferramenta que se coloca à serviço da persuasão, a bajulação também é uma forma de buscar
conseguir o que se quer de alguém, pois omitindo a verdade eu digo o que o meu
interlocutor deseja ouvir em troca de favores ou benefícios persuadindo-o a fazer
o que eu desejo. Era assim que funcionava a vida política dos gregos e depois
dos romanos no período republicano. Quem sabia falar e conduzir a assembléia
tinha nas mãos o poder para decidir e governar.
Apesar de o modelo democrático
ter sofrido algumas alterações deixando de ser uma democracia direta para ser
uma democracia semi-direta (como é o caso do Brasil), ou seja, há dispositivos
legais para que a população possa participar do governo, mas normalmente
delegamos a outras pessoas o trabalho de governar o país através do sufrágio,
ou voto. Desse modo escolhemos representantes para dois dos três poderes que se
fiscalizam mutuamente garantindo que o país funcione e eventualmente e se for
necessário a população pode por meio de referendo, plebiscito ou lei de
iniciativa popular decidir questões de interesse da população ou mesmo propor
leis para serem votadas no congresso nacional. E de fato, muitas questões
poderiam ter a atenção do povo (nossa presidente da República, por exemplo,
queria que a reforma política fosse consultada por meio de um plebiscito ou
referendo, o que foi vetado pelo congresso). No entanto, o exercício da palavra
e o embate discursivo ainda se faz presente no nosso meio de vários modos e em
vários seguimentos do nosso dia-a-dia político. As redes sociais, as conversas
nos grupos de amigos e colegas de escola, trabalho enfim, onde é possível o
diálogo e onde é possível exercer a isegoria
esse direito à palavra não poupamos esforços quando inclinados ou interpelados
a falar de política expressar nossa aprovação ou reprovação pelo que acontece
na República. Heródoto nos conta como os atenienses mudaram seu modo de agir
quando libertados da tirania de Písistratos, a democracia nos torna senhores de
nós mesmos a liberdade para falar é liberdade para agir. Vejamos o que diz
Heródoto sobre essa mudança de conduta do atenienses: “Assim cresceu o poder dos atenienses. Não se evidencia num caso
isolado, e sim na maioria dos casos, que o direito à palavra (isegoria) é uma
instituição excelente (schema spoudaion); governados por tiranos, os atenienses
não eram superiores na guerra a qualquer dos povos seus vizinhos, mas libertos
dos tiranos eles assumiram de longe o primeiro lugar. Isso prova que, na servidão,
eles se conduziam propositalmente como covardes, pensando que serviam a um
senhor (despotés); livres, porém, cada um agia com todas as suas forças para
cumprir a missão em seu próprio benefício”.
(Heródoto, História V, 78.)
O historiador está no mostrando a essência
da vida do homem grego como cidadão da pólis democrática de como a descoberta
da liberdade por meio do exercício do poder pelo povo e não mais por um tirano
muda a motivação dos habitantes de Atenas. Esse poder era visto na antiguidade
principalmente nos conflitos com outros povos, era na guerra que essa cidadania
se mostrava mais importante, pois proteger a cidade com coragem é proteger a
sua liberdade e garantir que a cidade preserve sua integridade (vale lembrar
que isso é muito bem explorado por Frank Miller no quadrinho 300 que depois foi
adaptado para o cinema). Não obstante o filósofo MacIntyre nos lembra como
Péricles transforma a cidade de Atenas em uma figura heróica. De fato,
MacIntyre explica que as virtudes homéricas são transpostas para a cidade como
um todo encarnando o herói homérico dotado de excelência e nobreza. Ora, a
democracia é lugar do contraditório, da polêmica a àgora é a arena em que os cidadãos se enfrentam com o intuito
exercer o poder conduzindo os assuntos da cidade e como eu já havia dito a
própria democracia é contraditória seja por exercer a tirania (quando deseja
dominar outra cidade) seja por acolher ou mesmo rejeitar um determinado modo de
pensar. Protágoras, Anaxágoras e Sócrates são testemunhas vitais de como a
democracia pode às vezes soar como uma tirania que cala e atua em nome de uma
forma “única” e hegemônica de pensar e agir.
O cenário político brasileiro tem
nos mostrado um pouco dessa contradição própria da democracia onde o embate
principalmente nas redes sociais tem ganhado cada vez mais força e muitas vezes
de forma instrumental promovendo desconstruções e ataques a essa ou aquela
forma de pensar. Com efeito, assistimos desde as manifestações de junho de 2013
uma mudança no modo de viver do brasileiro que até então praticava a idiotia,
vale dizer, não participava de modo mais aguerrido da vida política do país. De
fato, as manifestações de junho de 2013 foram o estopim e o pavil foi aceso nas
redes sociais, sobretudo, que aproxima eleitores e candidatos, partidos e
movimentos sociais de todas as espécies promovendo o embate similiar ao que
acontecia na àgora. Depois de uma das
eleições mais disputadas para presidência da república presenciamos o
descontentamento de muitos brasileiros com os problemas gerados pela forma como
o governo tem conduzido o país, além dos escândalos de corrupção que
infelizmente minam a força do governo e mostra as fragilidades do nosso
presidencialismo de coalização (em que o presidente da república consegue por
meio de aliança trabalhar com a maioria do congresso nacional).
Talvez uma das maiores
contradições do regime democrático seja a intolerância ao direito à palavra, e
isso tem acontecido com relativa freqüência nas redes sociais desqualificando
este ou aquele grupo ao invés de efetuar uma refutação com base em argumentos
válidos eu simplesmente ataco o interlocutor ofendendo-o de todas as formas
possíveis, a democracia que é o lugar privilegiado do lógos (aqui vou manter lógos
com o seu sentido polissêmico que abrange desde discurso até razão) também é o
lugar da violência e da desrazão (alogia).
Esse texto quer em certo sentido chamar a atenção tanto dos descontrutores que
são violentos com seus interlocutores agredindo-os com a instrumentalização da
informação quanto daqueles que apelam para forças exteriores e
intervencionistas como a ditadura militar ou qualquer outra força repressora
contra aqueles que não concordam com a opinião expressada por um determinado
grupo. Assim como um impeachment também se manifesta quando clamado sem
natureza política e jurídica como uma forma de violência contra a democracia
exercida pelo poder do sufrágio. Não se trata só de dar voz a maioria ou a
minoria, mas de dar voz a todos, pois a característica maior da democracia é a isegoria circunscrita pela isonomia e
isso significa que devemos escutar e falar com todos na medida em que somos
todos iguais perante a Constituição da República e se os gregos tinham uma lei
que exilava todo cidadão que ameaçava a constituição da pólis nós também devemos num apelo de racionalidade sim, em busca
do bem comum, ostracizar toda ideologia que deturpa e destrói a nossa
Constituição. Eric Weil nos lembra que a racionalidade é uma das formas que o
ser humano encontrou para escapar da violência e que a racionalidade demarca o
limite entre o moral e o imoral. E se, portanto, desejamos viver em uma
democracia sólida é preciso que escapemos da barbárie que violenta a nossa
constituição por meio da retórica que coloca o discurso à serviço de ideologias
quando a verdadeira retórica, aquela que Platão chamava de filosófica no
diálogo Fedro se empenha em disseminar a verdade para que
haja justiça e justiça para todos.
Deixar de lado nossos interesses particulares e garantias que deveríamos ganhar
porque o nosso país prospera e não porque apoiamos este ou aquele partido
político, essa deveria ser a razão do nosso posicionamento político.
Exercer a empatia quando
escutamos o outro e nos livrarmos de nossas contradições internas para que
possamos ser o espelho para o país em que vivemos.
E se a corrupção está no nosso gene, então, estamos fadados
à ruína. É de um determinismo bárbaro contra o povo brasileiro afirmar que está
no código genético dos cidadãos da Terra
Brasilis, não creio que isso seja verdade, pois conheci e conheço muita
gente honesta dentre pobres e ricos das diversas etnias que compõem o povo
brasileiro, acredito sim que há um circulo vicioso no meio político que deturpa
e destrói a humanidade dos muitos que ocupam o cargos dos três poderes que
exercem o poder em nosso país, corrupção fruto de uma inversão de valores que
transforma meios em fins em si mesmo e que coloca o poder a serviço de
interesses particulares quando deveria ser posto ao serviço da comunidade
chamada Brasil.
O momento atual é fruto não apenas da politização por meio
das redes sociais, mas frutos das conquistas que o nosso povo alcançou quando
não teve medo de mudar e sempre poderemos mudar quando compreendermos que o
poder na democracia emana do povo e que elegemos pessoas que dêem o seu melhor
por nós, posto que foi para isso que os escolhemos. Por isso jamais se esqueçam
ainda que a se use da mentira para a manutenção do poder não podemos nos
esquecer jamais que a “a verdade é irrefutável”.