Amor
secular e amor cristão – A linha de passagem entre duas formas de amar
Vi
perambulando pelas redes sociais a seguinte frase: “Uma geração de jovens com menos de 18 anos com a vida emocional
destruída por buscar um amor em pessoas, um amor que só encontramos em Jesus”. Deparei-me
com dois problemas ao ler essa frase, uma de ordem ética e outra de ordem
teológica. E gostaria de refletir sobre esses dois problemas para que possamos
entender o porquê dessa frase não exprimir de modo adequado aquilo que os
apóstolos, principalmente São Paulo ensinaram sobre a vida cristã e o amor tal
qual é compreendido no cristianismo.
Começarei
pelo problema teológico, pois ao resolvê-lo o problema ético se dissolverá
quase que automaticamente. A questão teológica que se coloca de forma
problemática na frase citada diz respeito ao conceito “amor” usado no
texto. A palavra amor é usada com dois
sentidos distintos ao falar dos jovens que tem a vida emocional destruída por
buscar “amor em pessoas”, o autor fala do amor cuja perfeição provém de Deus,
mas que nas relações humanas se dá sempre de modo imperfeito. Desse modo o amor
manifestado entre os jovens é nesse caso um amor romantizado, idealizado e
carregado de “erotismo”. Por erotismo não é necessariamente o conjunto de
práticas que chamaríamos de “sexuais”, mas um conjunto de práticas que envolvem
a atração, física e ou intelectual que gera e desperta o interesse entre os
jovens.
Enquanto
o amor em sua forma acabada e que só pode ser “encontrado em Jesus” seria algo
superior, e portanto, jamais se encontraria nessas relações imperfeitas. A
concepção teológica que estamos esboçando nessa análise remete diretamente no
plano existencial, pois os jovens estão tentando preencher um vazio de ordem
existencial com um amor imperfeito. Por outro lado, esse preenchimento só é
possível e encontrado em Jesus. Tal é a situação- problema que se apresenta
para nós.
O
grande problema teológico que se coloca no que tange o conceito de amor é que a
vida cristã é orientada desde o início da Igreja para refletir nas relações
interpessoais o amor de Jesus. Isso é ainda mais evidente quando compreendemos
a dimensão comunitária da Santíssima Trindade na qual o Pai, o Filho e o
Espírito Santo se tornam o modelo comunitário por excelência baseado na relação
de amor e equidade de todos para com todos. Desse modo, o amor secular é sempre
imperfeito, mas não o é porque meramente não reflete essa relação trinitária
perfeita, mas porque o amor secularizado principalmente na sua dimensão erótica
é sempre amor interessado, ao passo que o amor na sua forma acabada é sempre
desinteressado. Há outro aspecto que não nos pode escapar de vista, o sentido
hebraico, vale dizer, dentro da tradição judaica da palavra “amor” é bastante
diferente dos usuais grego e latino.
Vamos
resgatar esse sentido? Para entendermos o sentido bíblico-teológico do amor na
vida cristã. No livro do Deuteronômio
encontramos “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua
alma e com todas as tuas forças” (Dt 6,5). E em Levítico está escrito “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv
19,18). Esses dois trechos da lei de Deus são retomados pelo evangelista Lucas
e introduzem a parábola do bom samaritano (Cf. Lc 10, 25-37). A parábola ensina
o que é ser “próximo” de alguém, e entender essa lição implica compreender o
significado do amor pedido pela lei de Deus. Um amor que não é um mero gostar,
um simples sentimento, mas é um agir de santidade que se expressa como “fazer
bem”, oferecer o melhor que somos e possuímos para o outro. O primeiro
Mandamento é uma radicalização do segundo quanto a intensidade, pois só a Deus
é reservado um amor e cuidado que tome todo o nosso ser. Ao próximo cabe fazer
o bem que fazemos a nós mesmos. Assim, o reconhecimento ético do outro como
próximo passa pelo fazer-se próximo do outro.
Desse
modo a regra de ouro (Cf. Mt 7,12) exprime o aspecto ético dos mandamentos
divinos, uma ética profundamente teológica em que o amor não tem por primazia
uma afetividade ingênua, mas um agir movido pela santidade. Santidade exigida
pelo próprio Deus: “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus sou santo” (Lv
19,2). Santidade que o evangelista Mateus traduziu como perfeição. “Sede,
portanto, perfeitos como vosso pai celeste é perfeito” (Mt 5,48) e Lucas traduz
por misericordioso: “sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc
6,36). Ambos evangelistas traduzem a santidade, pois a perfeição de Deus se
exprime como santidade na forma da justiça seja dentro do horizonte legalista
que Mateus quer combater ou de Lucas que escreve a Teófilo um amigo seu de
origem grega. No caso de Lucas a perfeição de Deus se manifesta principalmente
em sua capacidade de se compadecer dos homens, coisa que no horizonte religioso
da Grécia pagã era algo inconcebível. Seja em uma concepção filosófica das
religiões pagãs, seja na religião tradicional a divindade jamais se importaria
com os seres humanos. Para a compreensão filosófica um deus que se importa com
mortais não preenche o requisito perfeição, pois sendo uma divindade só poderia
se preocupar com coisas eternas e perfeitas como ele mesmo. E para a religião
tradicional os deuses são em suma egoístas demais para se importarem com
mortais, para eles meros acessórios que satisfazem suas vontades pelo culto ou
pelos seus próprios interesses. Em outras palavras, os evangelistas ao
compreenderem que a santidade é uma perfeição que se exprime como justiça e
misericórdia abrem um novo caminho ético que estava presente na cultura judaica,
mas que ainda não havia ganhado o significado universal que o cristianismo por
si só pode alcançar.
Portanto,
há uma intima relação entre o amor a ser encontrado em Jesus que o texto sugere
e a prática desse mesmo amor entre pessoas que aderem ao cristianismo. A
própria sacramentalidade do matrimônio depende da prática desse amor, pois o
matrimônio é o sacramento que imita a relação unitiva entre Cristo e a Igreja (sem
contar a relação de complementaridade expressada em Gn 2,24). A natureza
teológica do amor é fundamental para todas as relações cristãs no âmbito pessoal
e social e precisa ser cultivada como parte de um exercício que tem Deus como
fonte da qual brota a referência do justo e do direito expressos no modo de ser
de Deus em sua essência e constituição ontológica e não como meros acidentes ou
atributos que complementam o que Deus é.
Traduzindo
em miúdos se levássemos essa frase as últimas consequências somente religiosos
que se dedicam inteiramente a vida religiosa (consagrados, padres etc) encontrariam
esse amor de que a frase fala com tanta leviandade. Afinal, nas relações entre
pessoas dificilmente encontraremos esse amor abstrato. No entanto, quando
aprendemos a ser “imitadores de Deus como filhos queridos” como pede o apóstolo
Paulo aos efésios que insiste “vivei no amor, como Cristo também nos amou e se
entregou por nós como oferenda e sacrifício de suave odor” (Ef 5,1-2), então, nos
tornamos capazes de experimentar esse amor que é “benfazejo; não é invejoso,
não é presunçoso nem se incha de orgulho” (1Cor 13,4).
O
grande problema dos jovens com mais ou menos de 18 anos no que se refere ao
amor, sejam cristãos ou não cristãos, é que transformam o ato de amar em algo
imanente e totalmente voltado para a satisfação de si. Até mesmo as amizades
tem se válido desse modus operandi e faz com que os laços se tornem muito finos
e efêmeros começam e somem sozinhos. Nas relações interpessoais o cristão é convidado
a amar como Cristo ama a Igreja ou o próximo (Cf. Ef 5,25 e Jo 15,12). O amor
secular busca obter benefício em todos os sentidos possíveis. Normalmente tem
caráter imanentista e recusa ou diminui o papel de um ser transcendente como
modelo que orienta a ação e garante sentido.
A
frase, entretanto, exprime em um sentido mais fraco (que creio ter sido a
intenção de seu autor) uma verdade inegável. Em Jesus encontramos o modelo do
amor de Deus que devemos imitar. Nele os jovens, adultos e idosos e crianças
encontram a forma basilar e mais perfeita do amor que é justamente o bem querer
e o bem fazer que nos faz próximos uns dos outros. É preciso, portanto, fazer a
passagem do amor secular para o amor cristão. Os cristãos são chamados desde o
batismo a viver essa experiência que nos santifica. A santidade não é um alto
grau que nos separa do resto da humanidade e que nos permite julgar e condenar
os que não alcançaram esse estado de vida, ao contrário, a santidade é um
convite à virtude na qual nunca estamos totalmente conscientes da nossa
santidade e a vemos sempre como processo de uma caminhada que precisa ser feita
em íntima relação com Deus (na oração e na vida mística) e que deve refletir
nas nossas relações interpessoais fazendo valer os mandamentos de Deus como o
pedido de um pai que quer ver seus filhos se dando bem uns com os outros. Se
possível gostaria de retornar a esse tema, mas por hora ficaremos por aqui.
Brener
Alexandre 07/07/2017