"Portanto, se algum desses que invectivam contra
a filosofia repetir o seu refrão habitual: ‘Por que, em suas palavras, há mais
energia do que em sua vida? Por que você abaixa o tom de voz diante de um
superior, e acha que o dinheiro é um meio necessário, abala-se com um prejuízo,
chora ao ficar sabendo da morte da esposa ou da morte de um amigo, cuida de sua
reputação e se deixa afetar por boatos malévolos? (...) Mais adiante, eu irei ainda mais longe do que suas invectivas e farei a mim mesmo mais recriminações do que você imagina; por ora, eis o que lhe respondo: Eu não sou um sábio e (para
que a sua malevolência fique feliz) nunca serei. Exija, pois, de mim, não que
seja igual aos melhores, mas apenas melhor que os maus; a mim me basta cortar a
cada dia um pouco dos meus vícios e repreender os meus extravios. Eu não fiquei
completamente bem de saúde, e nem vou conseguir ficar; estou fabricando para a
minha gota antes paliativos do que remédios, feliz se os ataques se tornam
menos freqüentes e as dores menos fortes; mas comparado com os seus pés, eu,
débil, sou um corredor. Digo isso, não por mim (pois, estou submerso em todos
os vícios), mas por aquele que conseguiu alguma coisa. " Sêneca, Sobre a
vida feliz XVII,1.3-4.
Enquanto lia a obra: Sobre a vida feliz me deparei com essa
passagem que me tocou bastante, por se tratar de uma confissão pessoal de um homem
que experimentou as vicissitudes da vida, o que engloba a boa e a má fortuna.
Então, eu quis também engrossar o coro dos que se reconhecem como um homem
“submerso em todos os vícios” e “ruim demais para saber acolher as graças de
Deus” e lembrar com Diógenes que “aspirar à filosofia também é filosofar”.
Posso dizer não sem indignação contra a mim mesmo, que também
eu estou nessa luta, e ciente de que a minha saúde me oprime bem mais do que eu
gostaria e, sabendo o quanto é difícil manter com coragem o ânimo diante de tantos
combates com o único propósito de me manter vivo, de sobreviver.
A verdade é que até o momento tenho buscado uma infelicidade
serena certo de que só assim poderei almejar uma felicidade modesta. Galgando
cada passo de uma vez, caindo e tropeçando, cego e surdo, com dores eu vou
caminhando resistindo em silêncio, e bradando no meu íntimo contra a minha
existência, certo de que se tenho alguma virtude, creio que seja a coragem, mas
não porque sei o que se deve temer ou não, como ensina o Sócrates do diálogo Protágoras, mas porque em tal estado
insisto em enfrentar a vida quando poderia muito bem entregar os pontos e dar o
último suspiro. Tudo o que posso fazer é tentar amenizar a dor e na medida do
possível e com bravura me colocar diante dos meus vícios e das minhas misérias,
creio que esse é o gesto mais corajoso que um homem pode ter. Penso realmente
que este é um ato de coragem legítimo, pois, que reconhecer suas fraquezas,
seus medos e saber-se miserável é prova senão de virtude, ao menos, prova de que
a ama, assim como se ama a verdade.
Eu que sou débil, e manco, que sou o mais miserável dos
homens procuro acompanhar os passos de homens e mulheres melhores que eu, e vou
caindo como se não soubesse andar direito atrás desses verdadeiros seres
humanos pensando que se ao menos conseguir acompanha-los serei senão feliz, ao
menos, menos infeliz. Porque a chance que tenho ao segui-los de me tornar menos patife
e mais homem é maior do que se eu simplesmente ignorasse todos os meus vícios e
pensasse que sou a encarnação da virtude.
Creio que como o Eros de Platão, eu também, estou entre o
pior dos homens e o mais divino deles, o pior porque sou miserável e o divino
porque aspiro ao que de melhor o homem pode almejar para si e para os outros.
Se, com efeito, eu fraquejo diante da dor não pense que é por covardia, é antes
porque a virtude ainda me falta e a sabedoria mais do que tudo. Ciente da
minha ignorância procuro ser menos pedra de escândalo para os outros consciente
de que ainda o sou para mim mesmo.
Então, quando me ver fraquejar e sucumbir aos meus medos,
quando ver que eu estou chorando e bradando contra a existência não me julgue como
se julga o sábio e o verdadeiro homem de virtude, porque o que estará diante dos seus olhos é apenas um homem miserável
atolado até o pescoço em seus vícios que está tentando a todo custo sair do
lamaçal. No mais das vezes enfrento tudo isso sozinho: o silêncio, a noite
escura, os medos, o pânico e tento agir com o mínimo de covardia e o máximo de
coragem que a pouquíssima virtude que adquiri me permitir.
Por isso, peço desculpas através na forma de uma confissão filosófica
sincera, não porque eu mereça desculpas, mas porque a verdade me impele a ser
sincero e franco comigo mesmo antes de tudo, pelas vezes que fraquejei e ainda irei fraquejar, pelas vezes que ainda irei tombar diante dos meus inimigos,
pelas vezes que ainda irei bradar contra a minha existência, até que lutando as
batalhas diárias afim de vencer a guerra da vida eu possa, ao menos, alcançar a
infelicidade serena e tranquila e quem sabe poder me dar o luxo de aspirar a
felicidade modesta.
E, se não sou capaz de ser amigo da minha solidão, é por
fraqueza e não por covardia, se almejo sua companhia é mais por amizade do
que por desejo, e se amei mais a pessoa do que a mulher que dá forma a pessoa é
porque vi na mulher mais do que pode ser desejado e menos do que é digno de ser
frequentado pela afinidade que o simples desejo oferece.
Um dia espero que entenda que aos amigos o maior bem e o aos
inimigos um bem maior ainda, é o que o homem mais miserável deve desejar quando
consciente de suas misérias e pecados. Vence-se um vício por vez e quando todos
os vícios se amontoam contra o homem de bem ele se vê em grande perigo, pois
que cercado e impelido pela coragem não pode largar a lança e o escudo, mas deve
enfrentá-los ao preço de morrer aniquilado pelo tormento do fracasso diante de
um inimigo mais numeroso e que usa da vileza para vencer ao invés da justiça.
Eu também, não sou sábio e se sou filósofo o sou por amar o
saber e não por ser sábio.
Sou filósofo porque optei por ser justo ainda que nem sempre
consiga sê-lo e, por fim, optei por ser filósofo porque optei por ser humano
ainda que não entenda o que isso realmente significa.